sexta-feira, 8 de julho de 2016

A estranha morte do neoliberalismo

De todos os lugares dos quais poderíamos esperar receber a notícia da morte do neoliberalismo, nenhum poderia ser tão surpreendente quanto a Finance & Development (F&D), a publicação científica do FMI. Praticamente todos os movimentos sociais, partidos políticos de esquerda e economistas dissidentes ao redor do mundo concordam em discordar da chamada "agenda neoliberal" adota pelas principais instituições financeiras mundiais e, sobretudo pelo FMI. Uma agenda normalmente imposta como condições de colaboração econômica entre seus países membros. É verdade que o nome não é adotado por seus defensores, funcionamento mais como uma acusação do que como uma descrição, e que a revista não representa a posição oficial da instituição. Mas, mesmo assim, não deixa de espantar encontrar a morte intelectual do neoliberalismo em seu próprio local de nascimento ideológico. 

No artigo Neoliberalism: Oversold? escrito em conjunto pelos economistas Jonathan Ostry, Prakash Loungani e Davide Furceri, todos membros da divisão de pesquisa do Fundo Monetário Internacional, os autores argumentam de modo contundente contra duas políticas econômicas centrais da agenda neoliberal: (i) a liberalização do mercado de capitais e (ii) e as exigências da consolidação fiscal (ou medidas de austeridade fiscal). Se o artigo de Ostry & alii estiver correto, e tudo indica que está, movimentos anti-neoliberal ao redor do mundo passaram a contar com um aliado inesperado: a própria economia mainstream. 

Antes de passar para os argumentos do artigo, pode ser útil tentar uma definição preliminar do que estou chamando de neoliberalismo. Deixando de lado usos políticos ou históricos, podemos definir a agenda neoliberal na economia política como um consenso entre economistas e formadores de políticas econômicas, iniciado em meados dos anos 80 e amparado intelectualmente nas obras de economistas-filósofos como Milton Friedman and James Buchanan, em torno duas grandes teses macroeconômicas relacionadas ao crescimento econômico. 

A primeira tese afirma que o aumento da competição econômica, seja nos diversos setores da econômica nacional, seja por meio da abertura das economias nacionais para o mercado mundial de capitais, é uma receita de sucesso para o crescimento econômico duradouro (crescimento esse que, para as então chamadas economias "subdesenvolvidas" representava a possibilidade de alcançar a produção econômica e o desenvolvimento social dos países "desenvolvidos"). A segunda tese afirma que, por razões políticas, o estado desempenha um papel muito maior seria o ideal nas economias contemporâneas, o que, novamente, impediria um crescimento econômico sustentado. Privatizar suas atribuições e obter a chamada consolidação fiscal das contas públicas seriam as duas formas mais recomendadas para corrigir esse problema. 

Em suma, segundo a agenda neoliberal, a regulação da economia e a provisão pública de serviços (incluindo a redistribuição de recursos econômicos) seriam os principais entraves ao desenvolvimento econômico mundial 

Novamente: os defensores dessas duas teses não se auto-descrevem como neoliberais. Eles tendem a assumir uma variante mais simpática amparada nas retóricas da cientificidade dos dados econômicos e da dura, porém necessária, responsabilidade dos gastos públicos. Como podemos ver no gráfico abaixo, a agenda neoliberal teve sucesso em liberalizar as economias nacionais. Além disso, a política da austeridade influenciada pelos trabalhos de economistas neoliberais representa a principal concepção de economia em muitas das democracias liberais. 


Mudança da política econômica mundial a partir dos anos 80: abertura e desregulamentação (Ostry & ali, 2016). O índice mede a introdução de mecanismos de competição em diferentes partes da economia nacional. 

O que Ostry & alii. mostram em sua pesquisa diz respeito aos resultados empíricos de duas políticas neoliberais específicas: a desregulamentação dos mercados nacionais de capitais, um corolário amplamente aceito da primeira tese, e a redução do déficit público, um corolário da segunda. Vejamos cada um dos resultados em sequência.

Em primeiro lugar, os autores mostram que a relação entre abertura economia, de um lado, e crescimento econômico, de outro, é no melhor dos casos uma relação dúbia:

The link between financial openness and economic growth is complex. Some capital inflows, such as foreign direct investment—which may include a transfer of technology or human capital—do seem to boost long-term growth. But the impact of other flows—such as portfolio investment and banking and especially hot, or speculative, debt inflows—seem neither to boost growth nor allow the country to better share risks with its trading partners [....]. This suggests that the growth and risk-sharing benefits of capital flows depend on which type of flow is being considered; it may also depend on the nature of supporting institutions and policies.­

Ou seja, é extremamente difícil afirmar que existe uma correlação de longo prazo entre abertura do mercado nacional ao capital estrangeiro e crescimento econômico duradouro (o tão sonhado "desenvolvimento"). Isso porque, segundo os autores, os custos da instabilidade econômica e cambial e os impactos das crises periódicas nas economias emergentes ultrapassam, na média, os ganhos imediatos do fluxo de capital estrangeiro. Além disso, como já havia sido mostrado por Fuceri e Loungani em outro trabalho, uma abertura financeira sem mecanismos de proteção tende a aumentar a desigualdade econômica o que, por sua vez, também ameaça a perspectiva de crescimento econômico sustentado. 

Isso não significa que a abertura econômica é sempre ruim, já que existem outras boas razões para isso, como, por exemplo, a participação no mercado de tecnologia. Mas o resultado nos leva a reconsiderar seriamente a tese de que a abertura irrestrita dos mercados nacionais (especialmente em países em desenvolvimento) seja uma receita de sucesso para o crescimento econômico de longo prazo. 

O segundo fracasso da agenda neoliberal diz respeito às políticas de austeridade. Por décadas, economistas tem insistido que dívidas públicas elevadas são péssimas para o crescimento econômico mesmo em países com alto grau de consolidação fiscal. Essa é a famosa conclusão dos trabalhos do economista de Harvard Alberto Alesina, segundo a qual, consolidações fiscais são expansionárias  - trabalhos que, diga-se de passagem, ficaram notórios na academia por serem, no mínimo "descuidados" em termos metodológicos (ver aqui um bom artigo sobre as "peripécias" econométricas de Alesina e como elas ajudaram a embasar decisões políticas conservadores nos EUA e na Europa). Alesina está errado. Elas não são expansionárias. Ao contrário: episódios de consolidação fiscal em países ricos foram seguidos, em média, pela queda e não pelo aumento da produção econômica. 

A razão para isso parece ser bem simples: a diminuição drástica do gosto público, a forma privilegiada de reduzir drasticamente o endividamento público, leva a um aumento da desigualdade o que, por sua vez, impede o crescimento econômico sustável:

The increase in inequality engendered by financial openness and austerity might itself undercut growth, the very thing that the neoliberal agenda is intent on boosting. There is now strong evidence that inequality can significantly lower both the level and the durability of growth [...] The evidence of the economic damage from inequality suggests that policymakers should be more open to redistribution than they are. 

Esse ponto é importante e merece ser ressaltado. Normalmente, críticos da ortodoxia econômica tendem a criticar defensores da austeridade ou de políticas de tipo trickle-down por representarem os interesses das elites econômicas preocupadas em manter seu poder econômico em épocas de vacas magras. Talvez isso possa ser o caso. Contudo, precisamos separar isso de uma outra proposição, a saber, o que a teoria da austeridade afirma que faz. Uma teoria só pode ser refutada quando refutada a luz de sua melhor formulação. 

Ao propor a proteção econômica dos mais ricos, defensores da austeridade acreditam que, com isso, estaremos beneficiando a todos e não apenas os mais ricos. Isso porque os lucros dos mais ricos tenderiam a escorrer pela economia abaixo aumentando a quantidade e a qualidade da remuneração dos trabalhadores. 

Ao rejeitar empiricamente essa proposição, o artigo soma-se a outros relatórios igualmente contundentes, como o documento da OECD publicado no ano passado, no qual o think tank das econômicas desenvolvidas reconhece a existência de uma "tendência secular" da diminuição da parcela dos ganhos provenientes do trabalho nas economias do G20. Segundo a OECD, a parcela de remuneração do trabalho diminui, em média, 0,3% ao ano entre 1980 e 2000 em comparação com a remuneração do capital. É verdade que, em termos econômicos, isso não significa necessariamente que as pessoas estão mais pobres nesses países já que isso depende de quantas pessoas obtém seus lucros a partir do capital. Contudo, como sabemos que a propriedade de capital é extremamente concentrada mesmo nas economias mais igualitárias do mundo, isso significa que  os quintis superiores da estrutura social estão se apropriando de uma parcela maior da produção nacional de riqueza em praticamente todos os países ricos do mundo. 

Na verdade, e esse é um ponto importante também para o artigo da F&D, a redução dos lucros na do trabalho na economia implicam que uma melhora no crescimento econômico não se traduzirá diretamente no aumento da renda dos trabalhadores, já que os ganhos passam a ser proporcionalmente canalizados pelos proprietários. Essa já uma realidade nos EUA pós-crise de 2009: ainda que o lucro corporativo em 2015 já tenha superado os níveis pré-crise, o que significa oficialmente o fim da recessão, a renda do norte-americano médio (um trabalhador) continua estagnada. Ou seja, mesmo que a ortodoxia neoliberal tenha, de fato, contribuído para a retomada do crescimento econômico (algo que os autores põem em suspeita), ela não estaria sendo capaz de beneficiar os trabalhadores, o que contradiz frontalmente os encantos políticos do neoliberalismo.

Em outras palavras: proteger economicamente os mais ricos no curto prazo não beneficia os mais pobres no longo prazo. Podemos provar então que a política austeridade não faz aquilo que ela própria afirma que faz.

Além dos argumentos propriamente econômicos, temos pelo menos duas outras boas razões para levar o artigo a sério. Primeiro, como já foi apontado anteriormente, o simples fato da maior publicação do FMI ter reconhecido a palavra neoliberalismo é algo digno de nota. Como sabemos, na política o poder de nomear os fatos importa bastante.

Finalmente, temos o caso brasileiro. É preciso notar nem tudo o que foi dito até aqui pode ser aplicado imediatamente ao Brasil, devido a dificuldade de consolidação fiscal pela qual passamos (os resultados do artigo procuram por em questão a ideia de austeridade em momentos normais da economia). Contudo, não é preciso ser um gênio da economia para perceber que 10 entre 10 economistas na folha de pagamento da família Marinho acreditam piamente nas duas teses atacadas pelo artigo de Ostry & ali.

Na verdade, a grande conclusão do artigo (pelo menos para este leitor brasileiro) é justamente a de que qualquer processo de consolidação fiscal deveria minimizar os impactos sobre os grupos economicamente menos favorecidos da sociedade, exatamente o contrário do que defende o consenso macroeconômico da direita brasileira, segundo a qual a consolidação fiscal no país passa necessariamente pelo empobrecimento imediato dos 90% de baixo da pirâmide social.

[F]iscal consolidation strategies—when they are needed—could be designed to minimize the adverse impact on low-income groups. But in some cases, the untoward distributional consequences will have to be remedied after they occur by using taxes and government spending to redistribute income. Fortunately, the fear that such policies will themselves necessarily hurt growth is unfounded 

A miséria não é o preço a se pagar pelo progresso econômico. Ao contrário, é a prova do seu fracasso. Se de fato temos um dever urgente de reestruturar nossa dívida pública (uma tese tão sujeita ao debate como qualquer outra) então talvez devamos fazer isso contra os 10%. Um ajuste fiscal em nome da justiça histórica e, agora segundo o próprio FMI, em nome da própria economia


Leituras:

- Ostry, Loungani & Furceri: "Neoliberalism: Oversold?" (F&D)

- Furceri & Loungani: "Capital Account Liberalization and Inequality" (IMF Working Paper)

- Krugman: How the case for austeriry has crumbled (NY Review)