segunda-feira, 28 de março de 2016

Conrado Mendes: Como trazer a PM para a democracia?

Os moradores da Grande São Paulo conhecem muito bem a sensação: existem duas Polícias Militares em São Paulo. Uma delas atua na periferia das cidades da região metropolitana. Ela é uma das corporações mais agressivas e violentas do mundo, conta com índices de confronto e homicídio próximos (se não superiores) à regiões de conflito armado ao redor do mundo e um triste histórico de violação de direitos humanos. A outra, que atua principalmente na zona oeste e em alguns enclaves da classe média-alta da região sul da capital, é extremamente cordial e eficiente. Procura cumprir os procedimentos legais e assume que os cidadãos são, em princípio, inocentes. Uma rápida consulta por bairros nos gráficos da violência organizado pelo Estadão ilustram em estatísticas essa dupla realidade. 

Entretanto, em meio à crise social das últimas semanas a sensação de que a PM funciona como uma força de segurança seletiva para uma parte da cidade contra a outra ficou ainda mais explícita. Se por um lado o governo de São Paulo optou por reprimir com extremo rigor o movimento dos alunos e alunas secundaristas da rede pública estadual e os movimentos sociais pela mobilidade urbana, por outro, as forças de segurança do estado foram usadas para ajudar a organizar às pressas manifestações contrárias ao governo federal, bloqueando a principal avenida da cidade antes mesmo dos  primeiros manifestantes chegarem. O recente episódio da PUC-SP ilustra o desconforto da seletividade: diante de uma possível escalada de violência entre alguns manifestantes contra o governo e os estudantes da PUC, a PM atuou com o seu tradicional rigor e disciplina militar. Contudo, manifestantes (e mesmo cidadãos desinformados) que utilizaram as cores vermelho durante os protestos da extrema-direita não contaram com a mesma sorte.



(Manifestante anti-Dilma confraterniza com o Batalhão de Choque durante ato na Av. Paulista)

Em uma corajosa entrevista ao El País, Conrado Hübner Mendes (USP) denuncia os problemas da seletividade da segurança em São Paulo um problema que, além da institucionalização do violência contra os cidadãos da periferia, começa a ganhar também contornos partidários à medida que a divisão política do Brasil se agrava. O próprio sistema jurídico estaria começando a apresentar sinais de partidarização - como a atrapalhada tentativa de criminalização de um ex-presidente da república pelo Ministério Público de São Paulo. Segundo Mendes, contudo, o problema é muito mais complicado do que apenas o uso seletivo da força. A institucionalização de demandas de classe no sistema policial e penitenciária é uma realidade antiga entre nós.

[a] polícia tornou-se marionete dos políticos mais primitivos da democracia brasileira. É instrumento para realização de objetivos políticos escusos: pratica a repressão violenta de demandas populares, dissemina o medo, oferece casos numerosos para os programas sensacionalistas que celebram qualquer coisa que a polícia faça. Policiais são mal remunerados, trabalham em situação precária e de alto risco, mas continuam sendo agentes disciplinados de uma política que só os prejudica. São reféns da própria miopia [...]

O risco, claro, é que agentes da lei se partidarizem, que passem a ser percebidos como defensores de interesses de certos grupos e não de outros, que passem a ser vistos por muitos como adversários e não como agentes imparciais preocupados em exercer sua função no estado de direito. Perdem a legitimidade e o respeito, moedas caras para que tenham boa relação com a sociedade. É o mesmo risco que correm Judiciário e Ministério Público quando desprezam regras formais e informais para o bom exercício de sua função. Risco talvez já não seja a palavra mais adequada, a partidarização da polícia e de parcela do sistema de justiça é uma realidade com a qual já estamos lidando. Esse alarme está tocando faz tempo e uma situação aguda como a presente está nos permitindo aprender a duras penas o significado não trivial desse fenômeno.



quinta-feira, 24 de março de 2016

As Origens e o Desenvolvimento do Igualitarismo Sueco

Entre os dias 28 de março e 1 de abril a Faculdade de Economia e Administração da USP organizará um mini-curso sobre as origens do igualitarismo sueco com o economista Erik Bengtsson (Lund). O curso é aberto ao público acadêmico em geral. Mais informações e a ementa do curso podem ser encontradas na chamada abaixo.


Erik Bengtsson, Lund University/Gothenburg University 

Dias: 28, 30 de março e 1 de abril de 2016 
Horário: 14 horas Local: 
Sala Delfim Netto, FEA 2

In international perspective, Sweden is known as a country with a high degree of economic equality and a large and generous welfare state. To the extent that it is true, this module explores the history of this state of affairs: why and how did Sweden become that way? We go back to the mid-to-late 19th century to investigate the development of Swedish society from the viewpoint of class relations, inequality and welfare policy

Mandatory Readings

Alestalo, Matti and Kuhnle, Stein (1987) “The Scandinavian Route: Economic, Social, and Political Developments in Denmark, Finland, Norway, and Sweden”, International Journal of Sociology 16 (3–4): 3–38. 

Bengtsson, Erik, Anna Missiaia, Mats Olsson and Patrick Svensson (2015) “Wealth Inequality in Sweden, 1750–1900”. Presented at the Economic History Society Annual Conference in Wolverhampton, March 2015, the XVIIth World Economic History 2 Congress, Kyoto, August 2015, and the 11th Swedish Economic History Meeting in Umeå, 8–10 October 2015. 

Optional Readings

Bengtsson, Erik (2014) “Labour’s Share in Twentieth Century Sweden: A Reinterpretation”. Scandinavian Economic History Review, 2014, vol. 62 no. 3, pp. 290–314. Castles, Francis G. (1973) “Barrington Moore’s Thesis and Swedish Political Development”, Government and Opposition pp. 313-331. 

Lundh, Christer (2004) “Wage Formation and Institutional Change in the Swedish Labour Market 1850–2000”, in Christer Lundh, Jonas Olofsson, Lennart Schön & Lars Svensson (Eds.), Wage Formation, Labour Market Institutions and Economic Transformation in Sweden 1860–2000 (Lund: Lund University), pp. 92–143. 

Roine, Jesper and Daniel Waldenström (2008) “The Evolution of Top Incomes in an Egalitarian Society: Sweden, 1903–2004”, Journal of Public Economics 92(1–2), 366– 387. 

Tilton, T. (1974) “The Social Origins of Liberal Democracy: The Swedish Case”, American Political Science Review 68(2): 561–571.

 Plus three short articles from the Economist magazine, from a special report on the Nordic countries from 2 February 2013. “The Nordic countries are probably the best governed in the world”, “The Nordic countries are reinventing their model of capitalism“, and “Immigration and growing inequality are making the Nordics less homogeneous”, all available from http://www.economist.com/printedition/2013-02-02 .


Seminários de Ciência Política do DCP-USP (2016)

O Departamento de Ciência Política da USP lançou a programação de seminários de pós-graduação para o primeiro semestre de 2016. As apresentações de pesquisas em andamento são semanais e abertas ao público em geral. Mais informações podem ser encontradas no cartaz abaixo.




Nota da ANPOCS sobre a conjuntura política do país

A diretoria executiva e o comitê acadêmico da ANPOCS publicaram em conjunto nesta semana uma nota sobre o acirramento dos embates políticos no Brasil. A nota alerta para os riscos que o descumprimento do devido processo legal, justificado por posições políticas-partidárias e apoiado por parte da mídia, pode acarretar para o futuro da democracia brasileira. 


NOTA DA DIRETORIA EXECUTIVA E DO COMITÊ ACADÊMICO DA ANPOCS SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICA E SOCIAL DO PAÍS

A Diretoria Executiva e o Comitê Acadêmico da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) vêm a público expressar sua preocupação com a situação política de nosso país. Vivemos um período de grave aguçamento das polarizações políticas, recrudescimento da intolerância e crescente desrespeito a direitos individuais. Sob o pretexto de manter a ordem pública, agentes do sistema de justiça e das forças de segurança se excedem em suas ações, fazendo da transgressão da lei um instrumento de suposto combate a ilegalidades. Tais ações, contudo, além de se constituírem em violações imediatas de direitos fundamentais, produzem o risco de uma escalada da violência política. É preciso que lideranças políticas e sociais, bem como as autoridades públicas e os meios de comunicação, tenham responsabilidade para com a preservação das liberdades e franquias democráticas duramente conquistadas pelo povo brasileiro, sem hipotecá-las à concretização de suas próprias agendas, por mais meritórias que possam ser em seus fins últimos. Não se produz justiça pelo justiçamento, nem se alcança a estabilidade política mediante o solapamento das regras democráticas ou o extermínio de atores políticos e sociais. A história nos cobrará uma pesada fatura se neste momento aceitarmos soluções demagógicas e ilegais como saídas para a atual crise política.

Diretoria Executiva e Comitê Acadêmico da ANPOCS 


segunda-feira, 21 de março de 2016

Greenwald: A Subversão da Democracia no Brasil

A plataforma The Intercept publicou neste final de semana uma longa matéria sobre os últimos acontecimentos políticos no Brasil, na qual procura contextualizar a escalada da crise política desde a eleição do governo Dilma até a dramática tentativa de golpe constitucional atualmente em curso no país (o texto pode ser lido também em português). Diferentemente de outras matérias na imprensa internacional, o artigo de Greenwald coloca em questão a forma como cobertura internacional da crise tem sido pautada por fontes e comentários (ou em alguns casos até mesmo por press release traduzidos) rastreados até o Grupo Globo de comunicação, maior conglomerado de mídia do Brasil controlado pela família Marinho que, como é de conhecimento comum no país mas não necessariamente fora dele, tem dado apoio incondicional à tentativa de derrubada do governo eleito em 2014. 

O artigo aponta o caráter extremamente elitista dos movimentos de rua contra Dilma e o flerte de suas lideranças com a nova extrema-direita das Américas. Põe em questão também a seletividade da cobertura da grande imprensa, como a proteção jurídica e midiática ao líder do impeachment Eduardo Cunha (não apenas um dos grandes beneficiados pela Lava Jato, como também acusado de ameaçar testemunhas de defesa do processo) e ao silenciamento constrangedor sobre o fato de que muitos dos membros da comissão de impeachment fazem parte, justamente, dos partidos que mais se beneficiaram de contribuições ilegais e que teriam todos os motivos do mundo para tomarem o poder e pararem a investigação (estima-se que cerca que 45 dos membros receberam financiamento das empresas atualmente sob investigação). Finalmente, o artigo ressalta ao o papel comprometedor do populismo judiciário na oposição ao governo, quando um juiz do interior do país cooperou com as Organizações Globo divulgando gravações - aparentemente ilegais - das conversas da presidente da república.


(Marca de luxo lança coleção em apoio ao juiz Sérgio Moro)


Como conclui Greenwald: 

There is no question that PT is rife with corruption. There are serious questions surrounding Lula that deserve an impartial and fair investigation. And impeachment is a legitimate process in a democracy provided that the targeted official is actually guilty of serious crimes and the law is scrupulously followed in how the impeachment is effectuated.
But the picture currently emerging in Brazil surrounding impeachment and these street protests is far more complicated, and far more ethically ambiguous, than has frequently been depicted. The effort to remove Dilma and her party from power now resembles a nakedly anti-democratic power struggle more than a legally sound process or genuine anti-corruption movement. Worse, it’s being incited, engineered, and fueled by the very factions who are themselves knee-deep in corruption scandals, and who represent the interests of the richest and most powerful societal segments long angry at their inability to defeat PT democratically.
In other words, it all seems historically familiar, particular for Latin America, where democratically elected left-wing governments have been repeatedly removed by non-democratic, extra-legal means. In many ways, PT and Dilma are not sympathetic victims. Large segments of the population are genuinely angry at them for plainly legitimate reasons. But their sins do not justify the sins of their long-standing political enemies, and most certainly do not render subversion of Brazilian democracy something to cheer.


sexta-feira, 18 de março de 2016

Por quem grita a extrema-direita nas Américas?

Por Lucas Petroni

Dois eventos políticos marcarão o ano de 2016. Ambos estão relacionados com o fortalecimento da extrema-direita no Novo Mundo. O primeiro deles é a surpreendente proeminência do bilionário Donal Trump nas primárias da campanha eleitoral norte-americana. Uma proeminência que transborda as urnas dos republicanos e contagia a mídia, os movimentos sociais e a conversa cotidiana nos EUA. Com uma retórica inflamada contra o establishment partidário, atos de violência durante comícios e contando com o apoio de grupos supremacistas brancos, podemos afirmar que Trump, infelizmente, será o grande vitorioso das eleições deste ano, ainda que dificilmente o candidato chegue a ocupar efetivamente a Casa Branca.  Os adversários políticos do bilionário caíram um atrás do outro - a mídia progressista, os republicanos, os financiadores de campanha conservadores, etc. Mesmo que o magnata neo-nacionalista perca a nomeação, nada indica que a violência do "trumpismo" nos EUA irá desaparecer tão cedo. Trump roubou a cena e a mente da oposição conservadora 



(Apoiadora de Donald Trump faz saudação nazista após o cancelamento do comício de Trump em Chicago, devido ao confronto entre manifestantes pró e anti-Trump)

O segundo evento é mais trágico, mas não menos surpreendente. Uma tentativa de golpe constitucional no Brasil, apoiado por setores conservadores do país, como a principal organização de mídia no Brasil (as Organizações Globo controlada pela família Marinho), lideranças de São Paulo, juízes de primeira instância, e - esse é o ponto - liderado nas ruas por grupos de extrema-direita, que desde o final 2014, lutam pela anulação da eleição de Dilma Rousseff. 

Existe muito debate no momento sobre a força ou a liderança desses esses grupos, como por exemplo o papel de think tanks de direta norte-americano, e, principalmente, se eles possuirão alguma projeção na política nacional. Em outras palavras, se teremos ou não um "Trump brasileiro". Candidatos ao título existem. Um deles é um militar aposentado que acredita que relações homoafetivas são essencialmente patológicas e que já defendeu abertamente no Congresso Nacional que (algumas) mulheres mereceriam ser estupradas. 

O outro é um juiz do interior do país responsável por julgar uma dos piores escândalos publicamente conhecidos da história brasileira, envolvendo a estatal do petróleo e praticamente todo o congresso nacional (alguns partidos, como o ultra-conservador PP foi pego inteiro pela justiça). Mais recentemente, Sério Moro, sob a justificativa do combate à corrupção, iniciou abertamente uma campanha de perseguição política aos membros do partido do governo. Adicionando insulto à injúria, existem fortes evidências de que o mesmo juiz grampeou ilegalmente o próprio gabinete da presidência do Brasil. Além de constituir uma quebra da constitucionalidade no país, a ação ameaça a própria continuação da mega-operação contra a corrupção no país ao violar o devido processo legal no caso.   

Interessante notar que o nome do ex-militar e do juiz são os únicos que aparecem nas pesquisas realizadas durante as manifestações. Isso faz sentido na lógica dos grupos de extrema-direita: todos os partidos políticos brasileiros seriam igualmente ilegítimos. Em pesquisa realizada em atos anteriores, quase a metade dos presentes concordaram que a melhor solução para a crise seria "entregar o poder para um juiz". De acordo com a extrema-direita, a única solução política para o país é a abolição temporária dos partidos políticos e a transferência imediato dos poderes executivos para atores apolíticos (sejam eles juízes, militares ou empresários). Na verdade, ao escutar os relatos dos manifestantes em primeira mão (ver o link abaixo) não parece existir nenhuma consideração pela continuação da organização democrática no Brasil:



(Entrevistas com manifestantes anti-Dilma)



(Grupos de extrema-direita pedem intervenção militar em São Paulo durante manifestação anti-governo)

Assim como no caso dos movimentos extremistas que apoiam Trump hoje, os grupos de extrema-direita brasileiro também foram inicialmente cortejados pela oposição, pela grande mídia (no EUA a Fox News) e, para a surpresa de uns e desespero de outros, tomaram um rumo próprio. Ao mesmo tempo em que aumentam nas ruas os casos de agressão e hostilidade contra defensores de posições progressistas, as próprias lideranças da oposição passaram a temer a rejeição eleitoral. Mesmo a Rede Globo precisa evitar, algo envergonhada, entrevistas com manifestantes ou a transmissão das imagens ao vivo devido a presença de cartazes de apoio à intervenção militar. Não se trata de um movimento político. Mas de uma luta anti-política.

O renascimento da extrema-direita e do neo-nacionalismo nos EUA e no Brasil são, evidentemente, fenômenos totalmente diferentes. Em primeiro lugar, o significado daquilo que passa por "establishment" nos dois países é totalmente distinto e, a despeito de elevados índices de desigualdade e exclusão racial, a configuração política não encontra nenhuma similaridade nos dois países. Talvez a principal diferença resida no contraste entre o recorte sociológico dos trumpistas, em sua maioria trabalhadores brancos não-qualificados relativamente empobrecidos, e os novos nacionalistas brasileiros e brasileiras, oriundos dos estratos superiores da hierarquia social. Não devemos nos enganar: os argumentos radicais da extrema-direita no Brasil encontra apoio na elite econômica do país, um feito que o trumpismo (felizmente para os norte-americanos) ainda não conseguiu realizar.

Contudo, a despeito das diferenças existe uma lição importante a ser aprendida nos dois casos. Gostaria de apresentar um argumento a respeito de um possível erro de avaliação nos dois casos. Um erro comum mas, acredito, grave dada a gravidade do momento. Evitar esse erro de avaliação é fundamental para entendermos o que aconteceu, está acontecendo e infelizmente acontecerá conosco em 2016. Para isso precisamos entender três coisas: o sentido de establishment, a interpretação recebida dos fatos e, finalmente, o erro de avaliação.



Bonecos de Lula e Dilma linchados e enforcados em Jundiaí/SP

Comecemos com o problema norte-americano. Se o movimento neo-nacionalista Making America Great Again de Donald Trump é contra o establishment, o que isso significa?  Establishment não é apenas um termo essencialmente contestado, ele é essencialmente relacional: ele depende da origem da perspectiva de quem contesta. Uma boa definição inicial para os EUA foi fornecida por Marilyn Geewax, editora de economia da National Public Radio. Democratas e republicanos divergem muito sobre muitas coisas, mas podemos apontar três posições sobre o futuro da economia norte-americana com os quais todos concordam: (i) a globalização é inevitável, (ii) o aumento da produtividade econômica (e não apenas da produção) depende de trabalho altamente qualificado e uma posição privilegiada no mercado global e (iii) a imigração é a melhor forma de atrair novos talentos para o país. 

Democratas e republicanos divergem, naturalmente, sobre como cada um desses pontos deve ser realizado - democratas preferindo subsídios federais e incorporação de residentes não-documentados enquanto republicanos defendem o livre-mercado e leis duras de imigração e naturalização. Mas ambos os partidos hoje concordam, por exemplo, que a única chance de crescimento econômico nas próximas décadas para o país é participar de acordos econômicos multilaterais e manter o predomínio global na produção tecnológica e científica. 

Para isso, os EUA precisam serem mais abertos - e não menos - ao mundo. Trump montou uma campanha (até o momento) extremante bem-sucedida contra todos esses pontos. Sua proposta para os EUA é fechar sociedade norte-americana tanto simbolicamente, como no caso de grandes acordos de cooperação econômica, como, literalmente, no caso da sua famigerada proposta de construir a grande muralha da América contra as "hordas de estupradores" do México.

O plano da extrema-direita parece, no longo prazo, catastrófico para os EUA. Tão estúpido na verdade que a principal explicação encontrada para o sucesso do neo-nacionalismo de Trump é baseada em fatores psicológicos. Os eleitores e eleitoras de Trump não saberiam o que fazem, estão sendo enganados por uma mistura de retórica de reality show e apelo à símbolos da (considerada) grandeza do país. Essa é a opinião, por exemplo, de Mark Zandi, economista-chefe da agência Moody, segunda a qual, "a performance da economia [norte-]americana é boa" e que "a fúria política está sendo causada [na verdade] por candidatos à presidência dos dois partidos". E aqui encontramos aquilo que acredito ser um possível erro de avaliação. 

De fato, os números da retomada do crescimento econômico nos EUA são positivos. Por exemplo, os lucro corporativo já ultrapssaram os valores pré-crise de 2008. O problema é que a divisão social da riqueza talvez nunca tenha sido tão desigual na América do Norte como no começo do século XXI. A classe média no país está desaparecendo pouco a pouco. Recentemente, um estudo sobre os lucros corporativos mostrou que apenas 6% das empresas no país detêm cerca de 50 % da renda das empresas na bolsa de valores. Os norte-americanos vivem hoje um típico problema latino-americano: o bolo cresce mas não está sendo divido. Trump conhece seu eleitor. E o seu eleitorado sabe que não terá vez no futuro econômico da América, tal como imaginado pela elite econômica e política. Seus eleitores e eleitoras furiosas sabem exatamente aquilo no que estão votando.

Como vimos acima, o papel da extrema-direita na trama brasileira está longe de ser um grito dos (relativamente) excluídos da apropriação da riqueza social. O sentido de establishment entre nós é diferente e, consequentemente, a sua tentativa de destruição também o é. Contudo, existe uma tentação explicativa para o caso brasileiro. Dado que a grande motivação por trás do movimento anti-governo é a luta contra a corrupção política e dado que o problema afeta não apenas o governo mas também - diríamos, sobretudo - a oposição, tendemos a concluir rapidamente que estamos diante de uma situação de oportunismo partidário. Os movimentos de rua estaríam sendo enganados pela elite política e cultural do país. A oposição estaria se aproveitando do sentimento difuso de descontentamento despertado pelos escândalos para retomar um protagonismo partidário perdido à quase duas décadas. Em uma palavra, os neo-nacionalistas brasileiros não sabem exatamente o que estão fazendo.

Diferentemente, acredito que a luta contra o establishment atualmente conduzida por grupos de extrema-direita é bem mais complicada do que parece a primeira vista. Mas todos sabemos o que estão fazendo - pelo menos no que diz respeito à interpretação social do país. 

O que podemos chamar de consenso ou grande pacto social no Brasil nas últimas décadas é moderadamente progressista. Podemos caracterizá-lo como aquilo que o economista Samuel Pessoa identificou por "contrato social" da redemocratização. Dentre outras características, esse contrato defende um modelo de crescimento econômico moderado, com forte expansão dos serviços públicos e gasto social, especialmente na forma de pensão e - marginalmente em termos tributários - em programas sociais contra a erradicação da pobreza. A escolha por um modelo de um crescimento econômico moderado está longe de ser maluca. Em um país com um déficit histórico de trabalho qualificado e capital humano, crescimento econômico rápido implicará que a renda se concentrará ainda mais no topo da estrutura social. Somos uma das democracias mais economicamente desiguais do mundo. Faz sentido não queremos aumentá-la ainda mais.

Como afirma Pessoa:

[o] processo de redemocratização gerou demanda para construção de um estado de bem-estar social extremamente abrangente. Temos hoje saúde, educação e aposentadoria públicas e universais. Além dos sistemas universais, temos uma série de programas desenhados para grupos da sociedade que visam cobrir riscos específicos de uma economia de mercado: seguro-desemprego, auxílio-doença e um sistema bastante generoso de pensão por morte são três exemplos. Desse ponto de vista não há diferenças significativas entre os governos Lula e FHC [...] 

No contrato social vigente, a variável crescimento econômico tem sido residual. O crescimento tem sido o possível depois de atendidas as demandas dos programas sociais. Se por algum motivo a situação da economia melhora e o crescimento se acelera, o Congresso vota por elevação na velocidade de crescimento do valor dos benefícios vinculados aos programas sociais. A melhor expressão do contrato social atual é a regra que vincula o crescimento do benefício real do salário-mínimo ao crescimento do PIB. Dado que o crescimento do gasto público com programas sociais vinculados ao piso salarial se deve a dois motivos — o crescimento do valor real do salário-mínimo e o da cobertura, que, devido à dinâmica populacional, é positiva e crescente —, a regra em vigor, necessariamente, fará com que o gasto cresça a velocidade superior ao crescimento do PIB. O contrato social vigente requer crescimento da carga tributária. Por mais que ela seja muito elevada, o forte processo de formalização sugere que há espaço para elevação adicional da carga sem necessidade de elevação da carga tributária legal. No entanto, a elevação da carga tributária legal está sempre na agenda, como ilustrado pelo recente debate em torno da recriação da CPMF. 

Podemos afirmar que até o final do primeiro governo Dilma, existia certo apoio a contínua expansão da carga tributária, ao aumento relativo e progressivo do salário mínimo e à expansão de programas sociais de redistribuição de renda - especialmente para focados na base da pirâmide. A política de aumento real do salário-mínimo foi um exemplo importante do pacto da redemocratização. Vivemos sob o maior poder de compra nos últimos 30 anos. Trata-se da renda básica de mais de 46 milhões de brasileiras e brasileiras segundo o DIEESE. Ou exemplo é a evolução da redução da pobreza extrema no país. Na última década quase 20 milhões de cidadãos foram incorporados à economia e à esfera de mínima dignidade social exigida pela Constituição de 88 (contudo ainda temos um Portugal inteiro de miseráveis). O dado é relevante na medida em que os números pararam de cair desde 2013. Mais um exemplo de que, com o fim do crescimento econômico da era Lula, as partes do contrato precisam re-discutir os termos da distribuição.











Ou seja, nosso golpe conta com a mídia, o carisma de líderes conservadores, o oportunismo cínico da aposição e, certamente, com muita estupidez. Mas, tal como no caso norte-americano, estamos também diante de um grave dilema distributivo. Para além de juízes celebridades e defesa de causas ridículas, como o suposto direito nacional de viajar para parques temáticos nos EUA, os manifestantes em verde-amarelo rejeitam o contrato social tal como o conhecíamos. Para eles, e, na verdade, para todos nós caso o golpe em curso seja bem sucedido, ele acabou. 

As manifestações apresentaram um caráter fortemente elitista e  racializado. Famílias brancas com com estudo superior (77% dos entrevistados disseram possuir curso superior completo) e com rende de mais de 10 salários mínimos. Não temos como saber com certeza o perfil de mobilidade social desses manifestantes. Seria um dado interessante na medida em que nos mostraria como essas pessoas interpretaram o processo de grande inclusão social das últimas duas décadas. Arrisco um palpite. "Queremos nosso país de volta", reivindicam os manifestantes. Devemos entender: queremos baixa inflação para o nosso consumo e alto desemprego para mão de obra barata. Alta desigualdade social e gastos com segurança pública, mas para todo o pacote da seguridade social. Queremos cortar gastos e não aumentar os impostos. A imagem-símbolo da manifestação (do golpe?), na qual uma família branca de classe média-alta do Rio de Janeiro vestindo verde-amarelo passeia com sua babá de informe, ilustra bem qual Brasil a direita que ocupou as ruas gostaria de resgatar: o Brasil anterior ao contrato social da redemocratização. 




Cidadãos e cidadãs que não querem a expansão de serviços sociais universais, porque normalmente já se encontram dentro no mercado privado de seguros e transporte, que são contra políticas inclusivas como quotas raciais nas universidades públicas, porque já pagaram o sistema privado de ensino, e odeiam alternativas de transporte aos carros, porque já os compraram. Ao invés disso, acreditam que diante de uma recessão econômica são os programas sociais e o sistema de pensões que devem ser cortados e que as classes C e D devem parar de receber crédito barato. Que o poder de compra em dólar deve ser protegido de toda forma, mesmo as custas da desindustrialização do país. E, finalmente, que o nosso sistema tributário  - ao contrário do que todos os especialistas concordam - não é regressivo. Na verdade, ele seria oneroso demais para com o 1% que, cidadãos de bem, carregam o progresso social brasileiro nas costas.

O crescimento econômico parou. Teremos que escolher. A extrema-direita já decidiu e parece ter levado os moderados. Se continuarmos a procurar apenas explicações políticas-partidárias ou personalistas para esse problema, ao invés de levarmos em consideração a imensa mudança na estrutura social pela qual passamos nas duas últimas décadas, corremos o risco de terminarmos tão limitados em nosso juízos como um economista de uma agência privada de rating. O que éramos 20 anos atrás não é quem somos hoje. No meu entender, as pessoas que marcham contra o governo são querem parar ou até mesmo retroceder essas mudanças. São críticos da nova mobilidade social brasileira. Posso estar errado em relação ao apoio ao golpe. Mas qualquer alternativa progressista daqui por diante contra a tentativa de regressão das conquistas sociais precisará entender a nova estrutura social brasileira, e como seus novos diferentes interesses e valores entram em conflito. 

Em 2014 decidimos, democraticamente, enfrentar a recessão econômica mantendo uma agenda social progressista. Isso não significa necessariamente que essa foi a melhor escolha ou que o governo Dilma tenha acertado. Democracia é o reino da incerteza. Particularmente acredito que tenha sido a melhor opção. Ou mesmo a única: as alternativas da oposição ao nosso dispor eram precárias e incapazes de entender à complexidade da realidade social brasileira. Isso não significa que a esquerda nunca deve perder. Cedo ou tarde teríamos que rediscutir nosso pacto social. Porém, quando grupos de extrema-direita querem derrubar o governo, seu canto de ódio traz algo mais preocupante e inaceitável: que não temos o direito nos autogovernar. Não importar na verdade qual sejam as escolhas que tenhamos feito. O voto de uns valerá mais do que de outros. O grito de ódio da extrema-direita brasileira é um grito do ódio de classe.


terça-feira, 15 de março de 2016

Chamada: Mesa sobre democracia e justiça na ANPOCS

A 40o edição do Encontro Nacional da ANPOCS contará com uma mesa dedicada à teoria política contemporânea, coordenada pelos pesquisadores Renato Francisquini (UFSC) e Hélio Alves (UFRGS). A ementa da mesa pode ser encontrada abaixo. A lista completa das mesas aprovadas para 2016 pode ser encontrada aqui. O encontro acontecerá entre os dias 24 e 28 de outubro, na tradicional Caxambu. Trata-se de uma excelente oportunidade não apenas para o debate de boas pesquisas de pós-graduação em diferentes lugares do país como também para fortalecermos a presença da teoria política contemporânea no encontro nacional da área de ciências sociais. O prazo final para submissão é 10/04.

40º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

24 A 28 DE OUTUBRO DE 2016 - CAXAMBU - MG

Teoria Política, Democracia e Justiça (SPG 31)

Coordenação: Renato Francisquini (UFSC), Hélio Ricardo do Couto Alves (UFRGS)
Ao menos desde a segunda metade do século XX, a teoria política normativa vem se constituindo como uma linha importante no interior da ciência política, organizando-se em torno de conceitos nucleares tais como justiça, tolerância, reconhecimento, democracia, autonomia, liberdade e igualdade, e incorporando à tradição do pensamento político disciplinas como direito, filosofia moral e teoria econômica. Encontram-se entre as principais tarefas desta área de pesquisa a reflexão sobre o dever-ser da convivência entre as pessoas em suas comunidades, Estados e no sistema internacional. De forma ampla, esses debates teóricos representam esforços em diversos níveis no intuito de orientar a formulação de perguntas e respostas relevantes acerca dos problemas enfrentados por sociedades marcadas por desacordo moral e segmentação socioeconômica, persistentemente às voltas com o problema ético-político da conjugação entre valores distintos e, muitas vezes, em conflito. Sendo assim, esse SPG pretende reunir trabalhos que reflitam a diversidade e a crescente produção acadêmica no campo da teoria política normativa, abordando questões políticas fundamentais às sociedades contemporâneas.


sexta-feira, 11 de março de 2016

As causas perdidas da Rede Globo

Por Lucas Petroni

Dois fatos são amplamente conhecidos sobre a Rede Globo, empresa de comunicação de propriedade da família Marinho. 

O primeiro, mais técnico e menos passional, é o de que o Grupo Globo - organização privada que controla a empresa - está entre os maiores conglomerados de mídia do mundo. Na verdade, de acordo com o Top Thirty World Media Owners (2015), relatório que mede o tamanho de grupos de comunicação a partir de gastos com receita publicitária, o conglomerado brasileiro ocuparia a 17a. colocação no mercado de informação, ficando atrás em termos de concentração de propriedade de mídia de gigantes como o Google e a 21st Century Fox. Mas, à frente de outras tantas companhias importantes como Yahoo e Microsoft. A Rede Globo é amplamente reconhecida como o principal canal de televisão dos brasileiros. Estima-se que sozinha controla algo em torno de 70% do mercado interno encontrando-se bem à frente das 5 outras empresas com alcance de cobertura nacional. 

O outro fato bem conhecido por todos os brasileiros é o papel dúbio da emissora na nossa democracia. Entre as causas políticas do Grupo Globo encontram-se o apoio público ao golpe jurídico-militar de 1964, a oposição à campanha pela redemocratização do país e o apoio incondicional a Fernando Collor, então candidato a presidência em 1989 - o que inclui um dos episódios de manipulação televisiva mais tristes da nossa história contemporânea. Mais recentemente a emissora se envolveu em crimes de sonegação financeira, participou de esquema de corrupção esportiva internacional, censurou o documentário inglês sobre a própria organização (intitulado Muito Além do Cidadão Kane), além de ser alvo de diversas acusações de tratamento pejorativo às mulheres e minorias sociais (uma lista mais detalhada da atuação política da família Marinho pode ser encontrada aqui). 

Nessa lista de problemas, vale ressaltar os laços da família Marinho com os governos militares durante os mais de 20 anos de autoritarismo no Brasil. Os militares autorizaram, por exemplo, que a família Marinho pudesse utilizar 5 milhões de dólares do grupo norte-americano Time-Warner para fundar sua emissora de TV, o que havia sido considerado inconstitucional pelo congresso à época. A ajuda legal e financeira da ditadura jurídico-militar em troca de apoio midiático ao regime, sobretudo no interior do país, foi decisivo para que o Grupo Globo conseguisse uma fatia quase monopolista da imprensa brasileira.  




A mais recente causa política do grupo tem sido a tentativa de condenar (ou pelo menos humilhar publicamente, uma vez que a devida condução do processo legal no caso esteja sob forte contestação) um ex-presidente brasileiro - o mesmo que havia sofrido aquela edição desfavorável em 1989. Em episódio raro, com traços de tragédia, o ex-presidente Lula expôs alguns dos termos dessa disputa em uma declaração ao vivo na semana passada. O apoio da família Marinho aos movimentos que defendem a derrubada, constitucional ou não, do governo Dilma é tão forte que uma das principais jornalistas da Globo News referiu-se a Dilma como "ex-presidente" duas vezes em uma mesma transmissão.

Todos os fatos apresentados até aqui são amplamente conhecidos. Contudo, existe uma diferença importante entre conhecer um fato e debatê-lo. Nenhuma dessas informações foi realmente debatida pela mídia no Brasil. Obviamente não devemos esperar que a própria empresa ponha em pauta a discussão de suas desventuras financeiras ao olhar atento do espectador-contribuinte. O ponto é que não há discussão sobre o próprio papel da mídia na política brasileira por nenhuma meio de comunicação - seja ele "global" ou não. Uma possível explicação é a de que não há pluralismo de mídia no Brasil. Os mesmos defensores do livre-mercado no mercado de bens e desmonte da estrutura de justiça social no Brasil não defendem com o mesmo ardor a livre circulação de informação. 



("Globo Golpista: Quer Incendiar o País", durante transmissão ao vivo do Jornal da Globo)

A questão da reforma estrutural da imprensa no Brasil pode ser abordada de muitas formas. Simplesmente abolir a Rede Globo certamente não seria a melhor forma de respondermos ao problema. Deixe-mos de lado por um momento as questões legais da emissora e as acusações de corrupção financeira, o que, vale lembrar, caracterizam crime. Ou mesmo sua posição conservadora e, em alguns casos, legalmente controversa sobre a exposição do corpo feminino e representações estereotipadas de minorias, que variam entre o preconceito e o simples mau gosto. Foquemos no problema da politização de sua comunicação. 

Não é razoável esperarmos que a mídia não tenham seus próprios interesses políticos ou que não queira participar da disputa democrática.  Não apenas é impossível conceber isso como talvez fosse indesejável. Para que um fato se torne conhecimento é preciso que ele seja deliberado, seja essa deliberação realizada por uma só pessoa seja por uma comunidade epistêmica. Uma condição necessária da deliberação é o contraste de diferentes argumentos e perspectivas sobre um mesmo problema. Diversidade não implica necessariamente qualidade, ou equidade de pontos de vista. Mas certamente sem diversidade não há conhecimento, só opinião.

O verdadeiro problema da reestruturação da mídia no Brasil - lembrando as duas ressalvas mencionadas acima - é a concentração da comunicação, não necessariamente o seu conteúdo, por mais repugnante que ele possa parecer aos olhos de quem venha a discordar dele. A luta pela democratização da comunicação no Brasil é uma luta contra o monopólio da informação, e seu objetivo é o pluralismo estrutural

Uma ressalva importante: não se está afirmando que o conglomerado simplesmente invente os fatos publicados, que criminosamente ela apresente informações falsas - ainda que a história tenha nos mostrado que eles o fizeram impunimente ao longo das últimas décadas. Mecanismos de responsabilização de conduta profissional mal-intencionada é uma função importante das instituições legais. Pluralismo estrutural não é uma resposta para a fraude ou para a invenção. É uma resposta possível para o silenciamento da diversidade. 

Voltemos para os últimos acontecimentos. Todas/os nós, enquanto cidadãs/ãos de uma democracia, ganhamos quando contratos milionários de construtoras ou doações de campanha ganham transparência. Ao expor a corrupção empresarial e política a mídia ajuda a tornar o poder político mais responsivo à sociedade. O problema é que fatos possuem diferentes interpretações, e um mesmo evento admite diferentes explicações muitas delas conflitantes. Sobretudo quando estamos acompanhado os acontecimentos em tempo real e de modo extremamente fragmentado. Por isso, o que será matéria de notícia, a seleção dos fatos, ou como eles são apresentados, quem os comentará no jornal das 8, etc., importam. Nem todas as pautas do país precisam ser construídas tendo como perspectiva privilegiada os anseios da população branca de São Paulo e do Rio de Janeiro ou a partir dos padrões econômicos das agências de investimento preocupadas com o capital estrangeiro. A política econômica dos comentaristas da Globo é tão questionável, de um ponto de vista científico, quanto os princípios que fundamentam as decisões do governo. 

A atual falta de pluralismo comunicativo entre nós caracteriza uma forma grave de injustiça contra outros pontos de vista, um tipo de opressão que a filósofa inglesa Miranda Fliker denominou de injustiça epistêmica. Ainda que a teoria de Fricker seja pensada especialmente para casos de violência de gênero e preconceito racial, a noção de injustiça epistêmica pode ser facilmente estendida a história do debate político na nossa democracia. A exclusão sistemática de pontos de vista regionais, de classe e de perspectivas teóricas, tais como o papel dos juros no déficit público ou a interpretação do devido processo legal, representam uma forma grave de injustiça na construção coletiva do conhecimento.

É interessante notar, nesse sentido, como tanto o ex-presidente Lula quanto manifestações contra a atuação política da Globo (como o manifestante durante o Jornal da Globo) precisaram fazer isso por meio dos canais controlados pela emissora. O custo da informação em um país continental e extremamente pluralista em termos políticos, culturais e identitários é altíssimo. Sua apropriação monopolista é um limite estrutural ao debate democrático. Um outro exemplo pode nos ajudar aqui. Afirma-se que precisemos de uma nova narrativa política nacional. Dado que apenas três ou quatro meios de comunicação possuem os meios para comunicá-lo ao longo do país, sendo o principal deles é a própria Globo, é difícil imaginar como esse pacto, mais uma vez, não terá que conceder aos ideais políticos da família Marinho.

Por fim, notemos que não podemos utilizar o argumento segundo a qual a emissora conquistou sua posição privilegiada no mercado de informação apenas devido às suas qualidades ("eles merecem", alguém mais desavisado poderia afirmar). Como vimos acima, esse monopólio foi obtido por meio de um governo ilegítimo que usou da força para obter o direito de governar. Nesse sentido, podemos afirmar que, ao lado da militarização da polícia, a concentração da mídia são os dois legados mais duradouros do autoritarismo entre nós - fato que explica, entre outras coisas, o destaque negativo do país nos rankings de concentração de mídia e violação de direitos humanos

As causas perdidas da Rede Globo já fazem parte da nossa história política. Aprendemos seus equívocos em sala de aula tal como as próximas gerações certamente apreenderão aqueles que ela está próxima de cometer ao apoiar a deposição de um governo democraticamente eleito. Nem todo dinheiro do mundo suprime o curso da história. O que precisamos saber é se vamos poder começar a discutir publicamente esses erros ou não. Se vamos ter uma mídia à altura das instituições democráticas do país ou vamos continuar vivendo no mundo fantástico da família Marinho. O monopólio comunicativo da Globo torna a própria imprensa no Brasil uma espécie de causa perdida.