sábado, 12 de dezembro de 2015

"Não cobiçarás a propriedade alheia"

Por Lucas Petroni

Acreditamos que vivemos em um mundo injusto. Acreditamos que as oportunidades sociais, a despeito de serem formalmente abertas aos talentos e a motivação de todos e todas, produzem resultados injustos diante de pessoas com recursos e histórias de vida diferentes. Em geral acreditamos também que a concentração de recursos sociais é, em grande medida, moralmente arbitrária em relação àquilo que somos ao nascer, em relação a nossa raça, classe ou gênero o ponto de partida nossos de vida. Concordarmos também que instituições democráticas são fundadas em um princípio de igual consideração e respeito por cada membro da sociedade. O igualitarismo, entretanto, discorda que o mero reconhecimento formal desse princípio seja suficiente para assegurar a justiça social. Em qualquer uma de suas muitas formas, a tradição de teorias igualitárias interpreta o reconhecimento do valor moral da igualdade como uma justificativa para a correção de distribuições injustas e relações assimétricas de poder. Para o igualitarismo, uma sociedade democrática justa seria aquela na qual as pessoas fossem também materialmente muito mais iguais do que somos hoje.

Entretanto, segundo uma famosa formulação do economista e filósofo conservador Friedrich Hayek, toda forma de pensamento igualitário estaria relacionado, de modo mais ou menos indireto, com o vício da inveja. "Quando nos indagamos a respeito da justificação das demandas [igualitárias]", afirma Hayek, "descobrimos que elas repousam no efeito do sucesso de algumas pessoas sobre os que são menos sucedidos ou, para colocar a questão de modo direto, repousam sobre o sentimento de inveja" (Igualdade, Valor e Mérito). Pior do que um simples contrassenso, o valor da igualdade que fundamenta teorias igualitárias seria uma espécie de vício moral. 




A idéia de que o valor da igualdade não passa de inveja disfarçada é uma objeção comum e, se verdadeira, extremamente problemática ao igualitarismo. A "objeção da inveja" - como podemos denominá-la - encontra-se presente não apenas nos escritos de filósofos conservadores do século passado, mas também encontra ressonância, de um modo menos elegante mas igualmente furioso, nos carros de som dos opositores de políticas sociais no Brasil. Nos últimos anos ele também passou a fazer parte do imaginário de algumas igrejas neopentecostais que interpretam na condenação bíblica da inveja um aliado contra políticas distributivas.

Mas não devemos nos enganar. Essa forma de objeção ao igualitarismo esta presente também em pensadores radicalmente contrários à moralidade religiosa convencional, tais como Nietzsche e Freud. Para o primeiro, por exemplo, a origem genealógica da moralidade contemporânea e, a fortiori, das reivindicações de justiça social, pode ser encontrada na internalização histórica do sentimento de ressentimento dos mais fracos em relação aos mais fortes. Com o tempo, afirma Nietzsche, os escravos foram inescrupulosos o bastante para fazer com que os seus senhores acreditassem que todos temos o direito de igual consideração moral e, portanto, igual reivindicação sobre o produto da cooperação social. 

Se é verdade que a busca por uma sociedade mais igualitária não passa de uma racionalização da inveja da propriedade alheia, então o empreendimento da justiça social como um todo estaria condenado de saída. Por que exatamente? Em primeiro lugar porque a inveja, para além da conotação religiosa, é uma emoção socialmente destrutiva e autocontraditória. Quando invejamos alguém somos capazes de atos atrozes, na maior parte das vezes velados, contra a pessoa invejada. No final das contas não nos importamos em vencer ou ter aquilo que o outro tem mas acabamos nos contentamos em minar as bases do sucesso alheio. O problema é que além de destrutiva a inveja é também uma emoção que incentiva estratégias autocontraditórias da parte daqueles que a vivenciam. Estratégias do tipo "puxar para baixo" não conseguem melhorar a imagem que temos de nós mesmos já que queremos, por definição, trazer o outro invejado para o nosso nível - por definição mais baixo do que o dele ou dela. Ao invés de aumentarmos a nossa auto-estima acabamos reconhecendo, ao contrário, a nossa própria inferioridade. Tal como a figura clássica do diabo dos cristãos - invejoso contumaz da criação divina - nunca nos tornamos melhores pela inveja. 

Por fim, a inveja é um problema sério para qualquer teoria da justiça que assume como dada a escassez dos recursos sociais. Podemos imaginar, é claro, que existam formas de organização social nas quais esse sentimento é impossível já que todos teriam o bastante. O antigo - e ainda poderoso - slogan "de cada um conforme suas habilidade, para cada um conforme suas necessidades" seria um exemplo dessa aspiração. Nesse caso a objeção da inveja não seria um problema, ou pelo menos seria um problema temporário. Contudo temos boas razões para sermos céticos quanto ao pressuposto de abundância de recursos sociais. É provável que os recursos naturais necessários para a vida em uma sociedade industrial tais como as nossas nunca sejam o suficiente para atingirmos um nível de não-inveja para todos. De modo muito mais relevante, é possível também que a natureza humana seja de tal forma complicada que mesmo que solucionássemos definitivamente o problema da escassez generalizada, ainda assim enfrentaríamos o problema da escassez relativa: invejaríamos a posse uns dos outros. Tal como reconhecido por Thomas Hobbes, a inveja, ou o "desejo de glória" a despeito do outro, é uma fonte permanente de conflito entre nós. 

Seja como for, para os efeitos do argumento assumiremos que a objeção da inveja é, prima facie, plausível e, se verdadeira, extremamente problemática para o igualitarismo. Antes de tentarmos enfrentar a objeção, contudo, é prudente tentar definir melhor os termos da disputa. O que é inveja afinal?

Na famosa definição de Aristóteles inveja é o sofrimento pessoal diante da fortuna alheia. Nesse sentido contextos de inveja envolvem pelo menos duas relações básicas. Primeiro, uma relação de competição entre duas pessoas: o invejoso e o invejado. Segundo, a existência de um bem ou algo que, aos olhos do invejoso, caracterize uma perda ou uma falta. O fato do outro possuir um bem, ou apresentar uma qualidade especial, ou desfrutar de bem-estar - para ficarmos com três exemplos comuns - é uma fonte constante de sofrimento ou inquietação quando comparados com os meus bens, as minhas qualidades e ao meu bem-estar. Invejar é diferente de ter ciúmes. Enquanto a primeira é uma emoção essencialmente competitiva e centrada no competidor, a segunda é a causada pela dor da ausência do objeto amado, pouco importa em relação à quem. Quando invejamos, invejamos alguém, quando sentimos ciúmes, o mundo todo é uma ameaça em potencial. De maneira mais analítica, e seguindo a proposta da filósofa Sara Protasi, inveja pode ser definida como uma reação adversa a uma percepção de inferioridade em relação a um outro. Essa percepção pode ser justifica ou não. Trata-se de um ponto importante e voltaremos a ele esse a seguir. 

Reivindicações de justiça social parecem a primeira vista se encaixar nessa formula. O sujeito da inveja (o menos beneficiado pela cooperação social) percebe uma forma desvantajosa de inferioridade em relação ao objeto invejado (o mais beneficiado pela cooperação social) e, assumindo que ele não pode alterar esse fato, passaria a tentar estragar a riqueza alheia. Essa é em poucas linhas a "compulsão socialista" segundo Hayek. 

É importante ressaltar que não é totalmente claro se teorias libertarianas - tal como a teoria das titulariedades adquiridas de Robert Nozick - são de fato compatíveis com a objeção da inveja. Essa afirmação pode parecer surpreende visto que auto-declarados libertarianos tendem a endossá-la. Todavia teorias libertarianas da justiça são fundadas no princípio moral de igual propriedade de nossos corpos e poderes pessoais e não no valor do mérito ou do aumento das oportunidades sociais.



A partir de um princípio rígido de propriedade de si poderíamos circunscrever o conjunto de deveres "naturais" aos quais nossas ações estão sujeitos (ver aqui uma tentativa mais detalhada de distinção entre teorias libertarianianas e liberais clássicas), Em primeiro lugar, portanto, libertarianos não valorizam o mérito ou as consequências positivas da competição econômica. Pelo menos não mais do que o princípio de propriedade. Ao fundamentarem os requisitos da troca justa por meio de transações voluntárias entre iguais em direito libertarianos são contrários, ou pelo menos indiferentes, ao princípio meritocrático. Posto de outro modo: mesmo um herdeiro indulgente ou um facínora milionário não perderiam seu direito de propriedade para o mais habilidoso e comprometido dos empreendedores sem titularidade ou diante de um multidão faminta.

Em segundo lugar, o libertarianismo não julga o conteúdo moral de nossas crenças. Cada um vive a sua vida do modo que melhor lhe convir. Modos de vida invejosos são tão desejáveis quanto modos de vida virtuosos - contando que dentro da lei. Na verdade, não é exagero afirmar que para um libertariano uma sociedade de invejosos com medo da lei é mais desejável de um ponto de vista moral do que uma sociedade de virtuosos com desejo de alterá-la. A objeção libertariana à justiça social é de outra ordem. Ela é fundada na definição libertariana de autonomia: de um lado a distribuição de recursos coage os proprietários a contribuírem, de outro, trata de forma paternalista os destinatários da distribuição. 

Contudo, a objeção da inveja permanece central para concepções liberais-conservadoras de natureza consequencialista, tais como as defendidas por Hayek ou Milton Friedman. E é fácil entender a razão para isso. Diferentemente do libertarianismo, liberais clássicos, ou neoliberais como são comumente chamados, não acreditam que a propriedade seja um valor em si mesmo (talvez nem mesmo exista para eles tal coisa como valores em si mesmo). O princípio da igualdade de oportunidades sociais, por exemplo, é justificado como o meio mais seguro de obtermos uma sociedade economicamente dinâmica e, por conta disso, mais vantajosos do ponto de vista material para todos. Instituições democráticas são avaliadas mais como um instrumento do que como a tentativa de realizar qualquer forma de valor. Quando teorias da justiça procuram alterar as regras da competição social em nome de um valor independente - como a igualdade - elas estariam, na verdade, prejudicando todo mundo ao mesmo tempo.

No debate filosófico contemporâneo o argumento esboçado acima é conhecido como objeção do nivelamento por baixo (levelling-down objection). Se valorizamos a igualdade como um valor independente, então devemos estar prontos para realizá-la mesmo em contextos nos quais ela entra em conflito com outros valores, como por exemplo o nível agradado de riqueza disponível. Ao compararmos duas sociedades, a sociedade (a), na qual todos possuem mais ou menos a mesma quantidade de recursos, e a sociedade (b), na qual existem diferenças consideráveis de riqueza entre os mais e os menos favorecidos pela cooperação social mas que, mesmo assim, os piores situados fossem mais ricos do que os piores situados em (a), seríamos obrigados a optar por (a) mesmo que racionalmente essa escolha seja pior para todos. Ao forçar o igualitário a assumir o valor moral da igualdade, pretende-se obrigá-lo a aceitar também sociedades materialmente pobres, ainda que distributivamente homogêneas, em detrimento de sociedades desiguais, mas materialmente ricas. Essa é a clássica acusação de que o socialismo é a melhor forma de manter todos iguais na pobreza.

De acordo com o liberalismo clássico o fato inegável de que nascemos com habilidades, motivações e, principalmente, com estoques de riqueza pessoal desiguais não seria relevante do ponto de visto moral. Ao contrário. Seria um insumo importante a promoção da riqueza agregada na medida que as pessoas competiriam entre si na tentativa de terminarem suas vidas com o controle de mais recursos ou invés de menos. Como afirma Hayek, "o fato de algumas pessoas nascerem com pais ricos não significa uma injustiça maior do que nascer com pais inteligentes ou carinhosos. O fato é que não se trata de uma desvantagem para a comunidade como um todo [grifo adicionado] se pelo menos algumas crianças possam começar suas vidas com vantagens que apenas pais ricos poderiam proporcionar [...]". Paradoxalmente para um auto-intitulado liberal, trata-se de um raciocínio moral profundamente coletivista: podemos sacrificar o bem-estar ou o autorrespeito de alguns para o benefício agregado de todos. A arbitrariedade moral da distribuição natural de talentos e recursos sociais é acessada não do ponto da moralidade mas sim da eficiência alocativa. Em uma sociedade com recursos concentrados, como a nossa, isso implica uma taxa de apropriação extremamente regressiva contra os piores situados. Mesmo assim os últimos não teriam razões para reclamar: a sociedade como um todo encontra-se melhor do que se cada um dos piores situados estivesse em uma situação melhor.

A posição social dos ricos deveria ser admirada pelas classes menos favorecidas mesmo quando reconhecemos que sua riqueza é tão contingente quanto o tipo de cabelo ou dotes físicos de alguém. A única forma de justiça que resta aqui é arriscar nossa sorte no livre-mercado.

Podemos ver portanto porque o argumento da inveja possuí uma premissa aristocrática, ainda que não naturalista. O infortúnio dos piores situados pode ser justificado pela sua utilidade na manutenção da ordem econômica (quando, por exemplo, o analista de economia do jornal das 10 horas afirma que um aumento do desemprego "é bom" para "aquecer" a economia). Em uma ordem social rígida, mas com posições formalmente abertas, os ricos seriam menos indulgentes, por temerem a perda de sua distinção para os pobres trabalhadores, e os pobres ambiciosos seriam estimulados a galgar alguns degraus na pirâmide social. Esse maneira de entender o argumento da inveja corrobora uma interpretação pouco ortodoxa, mas correta ao que tudo indica, das raízes aristocráticas do pensamento neoliberal,  tal como defendida recentemente pelo filósofo inglês  John Gray (Oxford).

Por si só, o pedigree aristocrático do neoliberalismo não é propriamente uma objeção teórica. No mínimo é uma razão para desconfiança em uma sociedade democrática. Felizmente o igualitarismo tem outras formas de lidar com a objeção da inveja. Em primeiro lugar, nenhuma teoria igualitária defenderia que o valor da igualdade é o único valor importante a ser almejado coletivamente. Ao contrário. A igualdade material é uma precondição fundamental para a realização de um ideal político e social complexo igualdade e não uma distopia alocativa. Na verdade, uma distribuição estritamente igual de recursos materiais não é sequer um valor em si mesmo para a maioria dessas teorias. O termo "igualdade" nesses casos estaria mais próximo do sentido de equidade e de inclusão do que de homogeneidade. O que é moralmente relevante é que a distribuição seja justa - não, necessariamente, que seja igual -  e que todos sejam tratados como iguais - e não, necessariamente, que tenham o mesmo.

Mas o que é uma distribuição justa? Como agentes morais livres e iguais precisamos controlar os recursos necessários para a realização da nossa igual liberdade. Teorias igualitárias, como a célebre justiça como equidade elaborada por John Rawls, tendem a interpretar essa necessidade a partir de uma pluralidade de razões contra a desigualdade. Existem, é claro, razões de ordem estritamente econômica para tornar as pessoas menos desiguais, tal como a satisfação de necessidades básicas mínimas e a correção do acesso desigual aos benefícios sociais, como saúde e educação. Todavia, existem também razões de ordem política para a objeção de relações desiguais de poder, como a prevenção contra o predomínio do dinheiro na política democrática e o aumento do controle social sobre os meios de produção. Finalmente, existiriam razões de ordem estritamente moral para rejeitarmos estruturais distributivas desiguais, como o papel fundamental da renda e riqueza pessoal para o desenvolvimento do autorrespeito em uma sociedade de proprietários. Ou seja, enquanto um ideal, e não apenas um valor isolado, o igualitarismo democrático precisa ser entendido como uma teoria da liberdade efetiva. e, por causa disso, precisa desenvolver critérios normativos para avaliarmos as diferentes relações que o poder e o dinheiro acabam por reproduzir. Tal como formulado de modo convincente pelo filósofo Álvaro de Vita (USP):

"para que cada cidadão disponha das condições que lhe possibilitem viver sua vida de acordo com suas próprias convicções de valor moral, não basta que seja institucionalmente garantida uma esfera de liberdade negativa. Ademais, é preciso que os arranjos institucionais básicos da sociedade, políticos e socioeconômicos, propiciem a cada cidadão os meios efetivos de fazê-lo, nisso se incluindo um quinhão equitativo de oportunidades sociais, renda e riqueza [...] Nesse ponto entra em cena outro valor central para a teoria política do liberalismo igualitário: uma concepção de liberdade que [...] podemos denominar liberdade efetiva" (p. 63-64).

Deixando de lado defesas mais sofisticadas do igualitarismo existe uma defesa mais básica e, talvez mais eficiente portanto em nossa combalida esfera pública.

Ao definirmos inveja deixamos em aberto a questão se a percepção da desvantagem original era, ou não era, moralmente justificada. Quando invejo a maestria acadêmica da minha colega de trabalho ("como ela consegue publicar artigos tão bons assim!") ou o jardim do meu vizinho, dificilmente estamos diante de emoções moralmente justificada. Entretanto, quando perco minha vaga no mercado de trabalho por causa da cor da minha pele, ou pelo fato de ser uma mãe solteira, ou não consigo herdar o poupança do meu parceiro homoafetivo por essa relação ser ilegal, ou ainda quando não encontro os meios de subsistência na agricultura devido a concentração fundiária, certamente sentimos um tipo de frustração em relação a desvantagem as quais estamos submetidos. Especialmente em uma sociedade que pretende justificar o suo coercitivo de suas instituições por meio do princípio de igual respeito por todos. Nesses casos o problema não é a cobiça pelo bem do outro mas sim a indignação por ser tratado como inferior em respeito.

Ainda que ambas sejam formas de emoção disruptivas, suas estruturais normativas são radicalmente diferentes. Nos indignamos quando diante ações erradas ou regras injustas que prejudicam o respeito que nos é devido enquanto iguais - sejam iguais em humanidade ou iguais em cidadania ou até mesmo iguais diante da lei. Diante de casos de desrespeito a indignação é uma resposta emocional apropriado. De outro modo seríamos cúmplices da injustiça diante de nós. A distinção entre inveja e indicação é extremamente relevante para entendermos a dinâmica da injustiça social no Brasil. Quando reconhecemos que formas estruturais de segregação racial ainda persistem em nossa sociedade, que apenas 10% da sociedade controla mais da metade da riqueza socialmente produzida, ou ainda que, mesmo depois de movimentos expressivos de inclusão social no país, o topos da pirâmide de renda e riqueza permanecem bizantinamente inalterados, faz sentido justificar formas de distribuição da riqueza social - em muitos casos extremamente moderadas para parâmetros internacionais - por meio da indignação entre iguais em respeito. As instituições sociais brasileiras não nos tratam como iguais. Mas deveriam.

Não podemos negar, é claro, que existem formas distorcidas de indignação. Nem que injustiças históricas acabem por motivar, com o tempo, um tipo de ressentimento contra aqueles que são percebidos como seus autores, mesmo que equivocadamente. Devemos esperar casos como essas especialmente quando as vítimas de injustiças concretas não possuem o controle sobre o seu ambiente e, portanto, não possuem esperança de remediar a situação. Contudo mesmo formas distorcidas de indignação não podem ser reduzidas à inveja.

Em resumo, temos pelos menos três bons contra-argumentos à objeção da inveja: (i) o caráter aristocrático e coletivista das premissas do argumento, (ii) a interpretação pluralista do ideal de igualdade nas teorias igualitárias contemporâneas e, finalmente, (iii) a diferença entre a indignação moral motivada por relações injustificadas de inferiorização ente iguais em direito e o vício humano, porém arbitrário, da inveja.

Se mesmo assim não acreditamos ser possível dissuadir o partidário do argumento da inveja, talvez a última esperança seja por meio de história de Marina, uma ex-trabalhadora sem-terra brasileira que deu seu depoimento ao programa internacional Human Project em 2015 (veja o vídeo acima). Podemos desafiar alguém a explicar para ela que a sua reivindicação por acesso à terra é fundada na inveja. Ou pior: podermos tentar explicar para as pessoas em seu acampamento que ao repararmos a injustiça histórica cometida contra as populações rurais no Brasil estamos nos nivelando para baixo enquanto uma sociedade democrática.

Caso você tenha se permitido participar do experimento mental proposto acima, então isso o que está sentindo nesse exato momento se chama indignação.



Leituras sugeridas:

- Protasi: "Varieties of Envy"
[Uma teoria geral mas ao mesmo tempo simples dos diferentes tipos de inveja]

- D'Arms: "Envy"(SEP)
[Especialmente a seção intitulada "Envy and Justice"]

- Temkin: "Equality, Priority and the Levelling Down Objection"
[Exposição da objeção do nivelamento por baixo em sua melhor forma]

- O'Neill: "What Egalitarians Should Believe?"
[Excelente ensaio sobre a natureza pluralista das razões contra a desigualdade nas teorias igualitárias]

- Vita: "Sociedade Democrática e Tolerância Liberal"
[Exposição precisa e acessível das relações entre liberdade e igualdade no igualitarismo rawlsiano]

[Repositório de narrativas pessoais ao redor do mundo]