segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Trump: Como destruir um país em 146 caracteres

Por Lucas Petroni

O líder nas pesquisas à indicação republicana para a corrida presidencial nos EUA, o empresário Donald Trump, descreveu a si mesmo como um "Ernest Hemingway de 140 caracteres". Ainda que a comparação seja injusta com o autor de Paris é Uma Festa, ela faz sentido em seu estilo peculiar de fazer campanha: uma mistura estranha, as vezes engraçada, as vezes assustadora, de narcisismo e maestria no uso da mídia para seus propósitos. Nos últimos seis meses, Trump tem utilizado sua conta pessoal do Twitter para dominar o debate político do país. Ele é o grande representante da política de 146 caracteres. 

Para dar uma ideia das razões pelas quais o Twitter de Trump é tão controverso, segue uma lista de algumas de suas declarações "extravagantes", a maioria delas escritas, repercutidas e, sobretudo, debatidas através das mídias sociais norte-americanas. 


(Credit: AP/Chris Pizzello)

Até agora Trump já afirmou que:

- imigrantes mexicanos são "criminosos, traficantes, estupradores, etc." (link);

- é preciso construir uma muralha para separar os EUA do México; e que o México deveria pagar por isso (link);

- praticamente tudo a respeito da China (link);

- é preciso bombardear "os campos de petróleo do ISIS", mas que não se deve falar isso publicamente pois eles poderiam antecipar essa estratégia (link);

- que ele irá aumentar os impostos sobre os ricos que não contribuem para a grandeza da America [para completo desespero dos Republicanos] (link);

- que o governo dos EUA deveria colocar os refugiados sírios em campos de concentração no país ou manda-los de volta para a Síria, ou as duas coisas (link);

- que o governo dos EUA deveria fechar as mesquitas no país (link);

- que muçulmanos em geral deveriam ser obrigados a se registrar em uma "lista" (link);

- que a Hilary Clinton usa peruca (link);

- que ele viu com os próprios olhos "pessoas em Nova Jersey comemorando a queda do World Trade Center" (link);

Certamente a política de Trump é risível - pelo menos para aqueles que a vêem de fora. Na maior parte das vezes é possível perceber que ele não consegue sustentar mais do que dois minutos (ou 146 caracteres) de debate sobre um assunto sem apelar para as suas frases de efeito, sendo a principal delas seu slogan de campanha "a América será grande de novo" (America will be great again). Isso não significa necessariamente que o candidato Trump se saia mal em frente às câmaras. Ao contrário. Ao lado de seus principais oponentes republicanos, como Carson e Rubio, Trump se destaca. O motivo disso não é difícil de ser entendido. Tal como muito do que estamos acostumados a assistir sob o rótulo de análises ou painéis de políticas na TV à cabo no Brasil, a coisa toda  parece política a primeira vista, mas na verdade não passa de show business.  E quanto a isso Trump é um gênio.

O establishment cultural nos EUA, incluindo até mesmo a ala conservadora da mídia (mas não a ultraconservadora Fox News, é preciso ressaltar), tende a desprezar a candidatura de Trump. Ora visto como um  simples problema de ego, ora como um efeito perverso da fusão entre política de massa e mídia, a candidatura de Trump é catastrófica para quase todo mundo - menos é claro para os seus eleitores. Para alguns ele ocuparia o clássico papel do demagogo (ver aqui um excelente ensaio do filósofo Jason Stanley sobre o assunto), para outros, seria apenas mais uma consequência da precariedade cultural do eleitor médio norte-americano. Uma ala do partido Republicano chegou ao ponto de se comprometer publicamente (desesperadamente) a tentar acabar com a sua candidatura temendo os efeitos adversos nas eleições do ano que vem. Todavia, não se trata de uma tarefa fácil derrubar o empresário: além das pesquisas de intenção de voto Trump controla também sua própria fonte de financiamento ficando imune à influência das fontes de recursos republicanas tradicionais como, por exemplo, os irmãos Koch

Cada uma dessas reações tem sua parcela de verdade. Contudo, duas consequências mais gerais parecem ter sido despertadas pelo fenômeno Trump. Consequências essas relacionadas não à pessoa Trump mas àquilo que podemos chamar - apenas porque não temos um nome melhor - de trumpismo na cultura política dos EUA. 

A primeira delas diz respeito ao papel das mídias sociais e das celebridades de modo geral na política. Quando começaram a ser mais disseminadas nos EUA, existia uma grande expectativa em relação ao seu potencial democrático para o debate político. Imaginava-se, algo ingenuamente talvez, que elas representavam uma nova forma de esfera pública ou que poderiam trazer o eleitorado para dentro do debate. Segundo esse raciocínio, a eleição de Obama teria sido um exemplo extremamente bem sucedido da diferença entre mobilização on-line versus mobilização partidária convencional. Com Trump, Tea Party e sua fiel horda de "revoltados on-line" podemos concluir agora que no cenário mais otimista a introdução de novos meios de comunicação não é nem intrinsecamente melhor nem intrinsicamente pior para a qualidade geral do debate. Esfera pública e inclusão estão lá, é verdade, mas não acredito que tenha sido esse tipo de participação que os mais otimistas tinham em mente. Essa é uma conclusão também válida para o Brasil. A quantidade de ódio racial e político nas nossas mídias sociais veio para ficar. 

Para colocar a primeira consequência em apenas uma frase: se a Islândia foi capaz de usar o facebook para reformar a sua constituição, esse fato diz muito mais sobre a Islândia do que sobre o facebook.

A segunda novidade, talvez mais interessante do ponto de vista da ciência política, é a aparente contradição entre a radicalização conservadora do partido republicano, de um lado, e a precarização da classe trabalhadora tradicional nos EUA, de outro. Os estados do sul e do meio-oeste dependem cada vez mais de ajuda federal para manter seus programas sociais e lutar contra o desemprego. O Kentucky, para ficarmos com um ótimo exemplo, recentemente elegeu um governador republicano famoso pelo seu fervor contra o Obamacare sendo, ao mesmo tempo, uma das regiões do país mais dependentes de programas de saúde sustentados pelo Estado. O azul (democrata) está desaparecendo no interior do país justamente nos estados mais pobres, precarizados e dependente da ajuda federal e, por conta disso, teoricamente mais suscetíveis à agenda política democrata, favorável por sua vez a expansão do regime de bem-estar no país (ver o mapa abaixo). 









Não estaríamos diante de um paradoxo? Afinal, se o eleitor é racional não deveríamos esperar nesses casos o voto em políticos contrários à redistribuição. A hipótese da loucura não é impossível. Talvez esses eleitores não entendam exatamente o funcionamento da economia ou eles próprios não queiram, contra seus próprios interesses materiais imediatos, identificarem-se como "perdedores" do jogo econômico (para usarmos uma metáfora partilhada tanto pela América profunda como pelos traders do mercado financeiro). O "trumpismo" nos EUA seria explicado, segundo essa hipótese, por um eleitorado composto por trabalhadores brancos não-qualificados cada vez mais "assustados e ressentidos" com a perda de seu protagonismo econômico e político no país e que estariam dispostos a votar contra seus próprios interesses econômicos em nome dos valores norte-americanos. Trump seria tão lunático quanto seu próprio eleitorado. 

Como disse, é possível. Mas um outra hipótese um pouco mais complexa que a primeira tem sido apresentada com certo sucesso. A explicação alternativa procura solucionar o mistério a partir da intersecção de dois mecanismos: (i) o empobrecimento relativo do trabalhador médio e (ii) o funcionamento do sistema eleitoral do país. Ainda que classe trabalhadora branca esteja empobrecida, ela ainda é relativamente menos empobrecida que a classe trabalhadora não-branca. A verdade é que os eleitores dependentes de proteção social nos Estados controlados pelos republicanos simplesmente não estão votando

Segundo uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center em 2014, é possível notar uma diferença importante nesses estados entre eleitores e não-eleitores em potencial em relação as opiniões sobre o papel do Estado na economia. Em relação à condição financeira pessoal, por exemplo, entre aqueles entrevistados que afirmaram que tinham intenção de votar nas próximas eleições apenas 19% possuía renda inferior à 30 mil dólares anuais, contra 46% daqueles que afirmaram não ter intenção de votar nas próximas eleições. Apenas 28% de potenciais eleitores afirmaram não tinham uma poupança para a aposentadoria, contra impressionantes 63% dos não-eleitores em potencial. Finalmente, 60% dos futuros eleitores concordaram com a afirmação "o governo é sempre mais ineficiente e incompetente", contra 54% dos não-eleitores.

Ou seja, talvez quem esteja votando nesses estados sejam, de fato, menos desfavorecidos do que aqueles que não votam, e o voto ultra-conservador poderia ser  explicado como uma mistura de proteção contra redistribuição, de um lado, e punição para aqueles que se encontram imediatamente na classe abaixo e que, por sua vez, não costumam participar das eleições nos EUA. Como afirma o jornalista Alec MacGillis em uma excelente reportagem sobre o voto conservador nos EUA, "eleitores [em estados economicamente prejudicados pela recessão] estão optando conscientemente contra a agenda econômica democrata, entendida como ruim para eles e boa [apenas] para as outras pessoas - especificamente para aqueles que recebem dinheiro público não-merecido e que vivem por perto". 

A principal razão pela qual a participação eleitoral entre os mais pobres nos EUA é tão baixa pode ser explicada em parte pelo modo como o sistema eleitoral distribui os custos da participação: nos EUA, ao contrário do Brasil por exemplo, o alistamento eleitoral não é compulsório e cabe a cada eleitor não apenas ir votar no dia do pleito (que nem sempre é no domingo) como se registrar como eleitor antes das eleições começarem. O custo informacional e financeiro, especialmente no casos de trabalhadores não-qualificados que precisam deixar de trabalhar para votar, aliados a notória dificuldade do sistema eleitoral indireto e a dificuldade de parte do eleitorado com a língua inglesa, acabam distribuindo de modo assimétrico o ônus da participação. E, o que é mais importante no caso que estamos tratando aqui, o tornam mais oneroso especialmente nos nos estados mais pobres. 

Talvez seja injusto culpar apenas Trump pelo aumento do chauvinismo nos EUA. Talvez o próprio sistema institucional esteja favorecendo uma espécie de contra-reforma política vis à vis a crescente mudança da composição social no país. Se o país está se tornando, em termos sociológicos, um país com maior protagonismo das mulheres, de jovens negros e de falantes de espanhol, politicamente o sistema partidário continua mais responsivo ao eleitorado de trabalhadores brancos. Mesmo que os últimos estejam se tornando cada vez mais ressentidos e pobres -  e não apenas em termos materiais.  


Agradeço à Trisha Olson pela discussão e pela ajuda com o sistema eleitoral dos EUA.