sábado, 28 de novembro de 2015

Dívida pública: técnica ou política?

De modo otimista, poderíamos esperar que um dos lados positivos da atual crise fiscal brasileira seria o estimulo na nossa esfera pública de uma discussão mais inteligente sobre os futuros da organização econômica do país. Paradoxalmente, contudo, qualquer pessoa que já tenha tentado enveredar pelo debate rapidamente descobrirá que a imagem da crise reapresentada diariamente nos meios de comunicação - com algumas excessões - é, ao mesmo tempo, invariável e inquestionável: estaríamos pagando o preço dos "erros" da política econômica do primeiro governo Dilma, voltada para o estímulo setorial, concessão de crédito barato e tentativa de diminuição da taxa de juros. Em um interessante artigo para a plataforma Outras Palavras, o sociólogo Felipe Calabrez (USP/FGV) analisa essa imagem recebida da crise, chamando a atenção para o problema pouco reconhecido (especialmente pelos economistas) das narrativas moralizantes presentes em nosso vocabulário econômico.

A imagem, ou "mito", das decisões econômicas equivocadas seria problemática segundo o pesquisador por duas razões. Em primeiro lugar, porque ela tende a misturar economia e política de modo ingênuo, aceitando como postulado que decisões macroeconômicas não acarretam conflitos de interesses, por vezes insolúveis, e que diferentes interpretações econômicas possuem vínculos sociais determinados com esses interesses. Tratar-se-ia de um erro ou de uma incompetência administrativa do governo ao invés de uma tentativa deliberada (acertada ou não, pode-se discutir) de solucionar um dos problemas macroeconômicos mais urgentes do país. Além disso, e talvez mais importante para o debate político atual, a visão recebida parece assumir que, em geral, decisões de política econômica são de natureza técnica e que, portanto, dependem de conhecimento acadêmico  ou científico muito mais do que da difícil tarefa de priorização de valores exteriores ao funcionamento da economia. Tal como, por exemplo, a aparente necessidade de mantermos uma das taxas de juros mais elevadas do mundo - entendida pela visão recebida como a consequência, e não a causa, da atual crise fiscal.

Não estou afirmando [...] que não se possa imputar erros às decisões de política econômica tomadas por Dilma em seu primeiro mandato. Parece plausível concluir que houve um conjunto de equívocos, de medidas mal calibradas e que não surtiram os efeitos calculados. [N]o entanto, que o que está verdadeiramente em jogo não diz respeito a “equívocos de política econômica”, ainda que eles possam ter ocorrido. O ponto que levanto é o seguinte: Acertadas ou equivocadas – de um ponto de vista de sua adequação aos fins almejados – e bem ou mal sucedidas – do ponto de vista de seus resultados observados ex-post – as medidas do primeiro governo Dilma desencadearam uma forte reação por parte de um grupo de economistas de oposição. [...] De acordo com essa visão, heterodoxia e desenvolvimentismo seriam ideologias, algo que encobre a visão correta da realidade. Seriam, portanto, equívocos.[...]

O debate sobre as “pedaladas fiscais” [por exemplo] elege como problema de primeira gravidade a “operação de crédito”, isto é, o repasse da CEF aos beneficiários antes do recebimento do dinheiro pelo Tesouro. É este o crime que o Tribunal de Contas da União (TCU) imputa ao governo. A quem interessa enquadrar o governo no crime de responsabilidade fiscal? Dentro da hierarquia de valores contida nesse debate, um eventual “não pagamento” do Bolsa Família a seus beneficiários tem peso zero. Nesse debate, o mais importante de tudo é o resultado primário das contas do governo, para onde os analistas de risco e gestores do dinheiro graúdo olham incessantemente. E é a narrativa destes últimos que encontra acolhida em todos os grandes jornais.
O exemplo acima, embora controverso, carrega aquilo que seria comum nas discussões mais gerais sobre política econômica. Por trás das visões sobre política “errada” e “correta”, há implícita uma definição de prioridades e valores. Isto fica claro mais por conta do que os discursos omitem do que daquilo que revelam. Os “economistas de mercado”, sempre chamados a dar seus pareceres em jornais e telejornais, falam sempre em excesso de gastos, mas costumam omitir a chamada componente financeira desses gastos – isto é, a conta de juros. Esta, quando mencionada, é sempre apresentada como consequência do excesso de gastos, nunca como parte dele. O próprio orçamento – um assunto eminentemente político – aparece nos discursos como uma questão técnica e de “responsabilidade”. Por trás de uma discussão fiscalista está, sem dúvida, uma questão de projeto de país e de prioridades a serem atendidas. E isso passa também pela questão do remanejamento do orçamento público.