quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Dívida pública: Estado ou gestão?

Existe vida inteligente na mídia brasileira para além de análises preguiçosas e editoriais raivosos? O debate travado entre dois grupos de economistas nas últimas edições do caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo prova que talvez sim.

O debate contrapôs duas teorias e, consequentemente, duas propostas normativas distintas sobre a melhor forma de lidar com o aumento expressivo da dívida pública brasileira. Ambos os lados do debate tomam como pressuposto que esse aumento representa uma ameaça imediata ao progresso econômico do Brasil. Contudo, a causa desse problema difere consideravelmente entre os dois grupos de economistas. 

De um lado, Mansueto Almeida Jr., Marcos de Barros Lisboa e Samuel Pessoa, no artigo O Ajuste Inevitável (19/07) (ver o link para uma versão estendida), defendem que o ajuste fiscal é inevitável, dada a deterioração das contas nacionais nas últimas décadas, e que o corte de benefícios sociais adquiridos ao longo desse período deva ser o componente mais importante das medidas de ajuste fiscal a serem adotadas pelos próximos governos. Segundo os economistas, a principal causa do déficit público não teria sido o aumento do gasto público recente (ainda que ele tenha contribuído) mas sim a própria dinâmica de crescimento insustentável do Estado brasileiro.

Segundo os dados de Pessoa, Lisboa e Almeida Jr., entre 1991 e 2014, a carga tributária do país passou de 25% para 35% - considerada relativamente alta para países emergentes - e ao longo desses 15 anos o setor publico teria se apropriado de quase metade (45%) do crescimento da renda nacional. Isto é, o aumento de gastos com saúde, educação e, sobretudo, previdência teria criado um caminho de insolvência inevitável dada as bases fracas do crescimento econômico no país: crescimento atrelado à venda de commodities, envelhecimento precoce da população e baixa produtividade per capita. Segundo os economistas:

O desequilíbrio fiscal dos últimos anos, que coloca em risco a solvência do Estado Brasileiro nos anos à frente, decorre em parte dos excessos e erros da política econômica dos últimos seis anos, mas é, principalmente, o resultado de um Estado que requer todo ano o crescimento da receita maior do que o do PIB, o que significa que todo ano devemos aumentar a fração da renda do país destinada a financiar os gastos públicos [...] O grave desequilíbrio fiscal do Brasil reflete a concessão desenfreada de benefícios públicos incompatíveis com a renda nacional. Prometemos mais do que temos, adiando o enfrentamento das restrições existentes. Deixamos para as próximas gerações as contas a serem pagas. O futuro tem, no entanto, o inconveniente hábito de se tornar presente. O populismo dos últimos anos cobra o seu preço

Já os economistas Felipe Salto e Nelson Marconi, auto-identificados como teóricos do Novo Desenvolvimentismo, discordam desse diagnóstico. No artigo O Novo Emplastro Brás Cubas (30/08) (ver aqui uma versão aberta), Salto e Marconi chamam a atenção para a distinção entre Estado forte, de um lado, e Estado ineficiente, de outro. A conquista e consolidação de direitos e benefícios sociais fundamentais - inclusive a garantia do funcionamento eficaz e equitativo de direitos individuais básicos - de fato demanda o financiamento público por meio de impostos mas disso não se decorre, necessariamente, que tais conquistas prejudiquem o crescimento econômico. 

Em oposição à proposta de Pessoa, Lisboa e Almeida, Salto e Marconi procuram demonstrar que a dívida pública brasileira deve ser entendida como um problema de gestão e que o gasto com a administração do Estado (estrutura de pessoal e custeio) deveria ser reavaliado. Segundo os dados apresentados pelos autores, esse tipo de gasto responderia por 8% do PIB brasileiro. Além disso, seria possível demostrar que os preços no setor público são sistematicamente superiores aos praticados no setor privado. Esse sobrepreço seria causado pela falta de incentivos à poupança pública: 

Entre 2005 e 2014, a inflação acumulada (variação do deflator implícito), no caso da administração pública, totalizou 128,6% e, no caso do setor privado, 88,5%. [...] A partir dessas informações, é possível estimar quanto teria sido economizado pelos governos se os preços dos bens e serviços consumidos pela administração pública tivessem se comportado, pelo menos, como os preços dos bens consumidos pelas famílias. Em 2004, o consumo da administração pública estava em R$ 358,8 bilhões. Somente pelo efeito do aumento de preços, os gastos foram aumentados, entre 2005 e 2014, em R$ 461,4 bilhões. [...] É possível, portanto, fazer um ajuste fiscal que resulte em crescimento econômico e que possibilite uma trajetória de redução dos juros e da dívida pública sem sacrificarmos as conquistas sociais (apenas eliminando as distorções e exageros nos benefícios praticados). Logicamente reduzir despesas com pessoal e revisar os contratos da administração pública não seria trivial, mas os governos deveriam ter como meta a médio prazo o alcance desse objetivo.

O surgimento de outras vozes nesse debate - mais distoantes do mainstream econômico - é altamente recomendado caso queiramos transformar situações de reavaliação como essas em possibilidades de transformação social. Mas para que isso ocorra é preciso, entretanto, termos clareza tanto sobre os fundamentos normativos de nossas análises como sobre as consequências práticas de nossas posições. 

Novas contribuições são bem-vindas.