terça-feira, 28 de julho de 2015

Limongi: Revisando as origens do governo representativo

O cientista político Fernando Limongi (USP) publicou na última edição da Sinais Sociais o artigo Governo Representativo e Democratização: Revendo o Debate. O trabalho sintetiza os principais argumentos do pesquisador contra a visão recebida da historiográfica brasileira a respeito das origens da democracia no país. Uma visão normalmente sustentada, segundo Limongi, a partir de dois pressupostos igualmente problemáticos: (i) que os princípios democráticos foram deturpados - ou "fora de lugar" - ao serem aplicados à realidade sociológica brasileira e (ii) que a Inglaterra, os EUA e a França caracterizariam o modelo exemplar de desenvolvimento (lógico) da política democrática. A tese "revisionista" proposta por Limongi questiona abertamente ambas as proposições. Nem as eleições deixavam de ser competitivas por aqui, nem a desigualdade política deixava de ser explícita e intencional pelas elites de lá.

[...]

[A] literatura recente tende a afirmar o caráter anômalo do desenvolvimento político brasileiro, sua divergência em relação ao modelo ocidental clássico representado, por exemplo, no conhecido esquema proposto por T. H. Marshall para dar conta da expansão da cidadania na Inglaterra. Neste tipo de análise, a ênfase recai sobre a diferença, sobre a especificidade da experiência nacional cujo resultado último seria uma democracia atrofiada e frágil. Estas análises, em geral, carecem ou não são fundamentadas por um modelo explicativo claro para a emergência do regime democrático. A história política do Brasil continua caracterizada pela negativa, pela ausência, a partir de um contraste a um modelo de desenvolvimento político modelar. A referência é a história política da Inglaterra, França e Estados Unidos sem que estas sejam examinadas a fundo. Nas análises recentes [...] o modelo elaborado por T. H. Marshall para dar conta do caso inglês é tomado como o padrão, enquanto o Brasil (ou de forma mais geral, a América Latina) assume o papel do caso desviante.



Resumo: Este artigo propõe uma releitura do debate sobre a evolução política do país. Partindo das teses que sustentam a inviabilidade ou incompletude da democracia no Brasil, o artigo sugere uma revisão da forma de entender o processo de democratização. Trata-se de revisitar um velho debate cujas origens são traçadas a interpretações clássicas como o de Victor Nunes Leal e Sérgio Buarque de Holanda.

domingo, 26 de julho de 2015

A batalha da classe média

Nove em cada dez norte-americanos descrevem a si mesmos como membros da classe média. A crença é ilusória - apenas 60% dos norte-americanos conseguiriam obter mais de $ 2 mil em uma emergência - mas de fácil explicação: além de parte constitutiva do american dream, ao longo do século XX os EUA tiveram uma das classes médias mais ricas do mundo. Desde a década de 70, entretanto, a renda média desse setor permanece estagnada em termos comparativos. Uma família de classe média em 1983 ganhava em média $ 93 mil anuais, contra os mesmos $ 96 mil em 2013. Em comparação, ou por causalidade, dependendo da sua orientação teórica, a renda média anual de uma família rica em 1983 era de $ 318 mil, passando para $ 639 mil em 2013. A imagem abaixo representa graficamente a mesa realidade, partir de outros critérios e metodologia: enquanto a renda da classe média permanece congelada, a renda dos mais ricos mais que duplicou nos EUA a partir do final do século passado.



(Evolução do rendimento médio anual da classe média vs. do 1% mais ricos da sociedade norte-americana ao longo do último século/ CNN Money: How the middle class became the underclass)

Com o início da corrida eleitoral nos EUA, o debate acadêmico e político a respeito do congelamento da classe média anda feroz. Recentemente o canal de notícias VICE dedicou uma de suas mesas redondas ao estilo "hard talk" a essa polêmica: What Happened to Middle Class America?. (o programa pode ser assistido abaixo). O debate foi protagonizado por um pesquisador do think tank progressista Center for American Progress, uma economista do think tank conservador Reason Foundation e pelo jornalista Charlie LeDuffde de Detroit - cidade escolhida para sediar o programa justamente por ter literalmente falido em 2013 e levado a classe média da região igualmente à bancarrota (o título do livro de LeDuffe é sintomático: Detroit: An American Autopsy).  



O programa merece ser assistido. Não apenas porque o tema é interessante por ele mesmo, mas sobretudo porque ele contém algo impensável em nossa esfera pública: divergência pública sobre um tema controverso. Nós, cientistas políticos, filósofos, economistas ou pesquisadores em geral, tendemos facilmente a reconhecer que nossas emissoras e jornais dificilmente estariam dispostos a patrocinar um programa, digamos, a respeito da histórica inclusão social pela qual passou o país nas últimas décadas. De fato, é muito difícil encontrar honestidade intelectual nos editores de programas sobre econômica quando todos os convidados selecionados fazem parte de consultorias privadas ou quando a economista mais gabaritada em cena é a própria entrevistadora (para ficarmos no exemplo: alguém já presenciou alguma discordância séria entre os convidados no programa da Miriam Leitão?).

Por outro lado devemos nos perguntar: quantos de nós estaríamos aptos a discutir nossas concepções e argumentos de modo acessível, honesto e com autoridade sobre um tema de ampla relevância política publicamente? Talvez seja a hora de começarmos a lutar as nossas batalhas...

Chamada: Hannah Arendt - 40 anos depois

Dezembro de 2015 marca o quadragésimo aniversário de morte da filósofa (ou "teórica da política", como ela própria iria preferir) alemã Hannah Arendt. O centro de pesquisas políticas (CEVIPOF) da Sciences Po celebrará a data com uma jornada de estudos dedicada à autora. O evento ocorre entre os dias 3 e 4 de dezembro, o deadline para envio de trabalhos é 11/09. As línguas oficiais do evento serão inglês e francês. 


Hannah Arendt: Forty Years Later 

Paris, December 3-4, 2015, SciencesPo/Cevipof Conference

Friday the 4th of December 2015 marks the 40th anniversary of Hannah Arendt’s untimely death in her apartment in New York City. For this occasion the Doctoral School of SciencesPo and the CEVIPOF organize the event « Hannah Arendt: Forty Years Later », which will take place in Paris on Thursday the 3rd and Friday the 4th of December. In collaboration with several partners, the evening of Thursday the 3rd of December will gather perspectives from the three countries in which Arendt lived – Germany, France and the USA – on the pertinence of Arendt’s thought to confront the world at present. On Friday the 4th of December, a journée d’étude will bring together recent developments in Arendt scholarship and connect these to some of the most pressing political issues of our own time. Contributions on diverse themes and from a variety of academic perspectives pertaining to Arendt’s oeuvre are welcomed. This journée d’étude aims, with the help of Arendt’s insights, to confront contemporary issues like:
  • Identity and politics How do Arendt’s reflections on identity inform our comprehension of current struggles in the political realm? How do particular political practices disentangle existing and give rise to new identities and connections? In what ways do these practices challenge and displace the role of established religious, national or ideological identifications and sources of belonging? How can these reflections nourish our judgments on a wide variety of topics like, e.g., struggles for same sex marriage; the current migration  tragedies around the Mediterranean; the terrorist attacks in Paris and Kopenhagen; etc.
  • The plasticity of the political (and the social and the economic). Can Arendt’s writings illuminate the role of public and common goods to sustain political communities? How does the category of work mediate between the social and the political or is Arendt’s ‘purification’ of the political still a credible line of interpretation? How can worldly, common practices be conceived in a fractured environment, marked by the loss of a shared common world and of common sense? How do Arendt’s reflections illuminate the material (pre)conditions for building a common world? Can the lenses Arendt provides illuminate current economic and political struggles, e.g., in the EU or over regional trade negotiations such as TTIP?; etc.
Both senior and junior researchers from France and abroad are encouraged to propose abstracts for contributions to this journée d’étude, the working languages of which will be both English and French. Selected contributions will also occasion the composition of a special issue on Hannah Arendt in the French academic journalRaisons Politiques (https://www.cairn.info/revue-raisons-politiques.htm).

Submission guidelines: If you are interested in presenting a paper at this journée d’étude on Friday the 4th of December 2015 in Paris, please send a 500-700 word-long anonymous abstract in .doc format to hannaharendtfortyyearslater@gmail.com before Friday the 11th of September 2015. 6 participants will be selected. Decisions regarding acceptance of the abstract will be notified by the end of September 2015. The working languages of the journée d’étude are French and English. Dinner and refreshments will be provided for by the organization, but unfortunately transport and accommodation will not be reimbursed (even if the organization committee is engaged to help in the search of bursaries for participants in collaboration with its partners).

Organization Committee: Marianne Fougère and Maurits de Jongh

Scientific Committee: Myriam Revault d’Allonnes, Jean-Claude Poizat and Astrid von Busekist

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Peter Singer: Por um altruismo mais eficaz

Imaginemos que Susana, uma professora aposentada com recursos moderados, decida legar suas economias para a fundação sem fins lucrativos que cuida dos belíssimos jardins do museu Metropolitan em Nova York em um ato repentino de altruísmo. Imaginemos agora um brilhante aluno recém formado de filosofia chamado Mateus que, após refletir cuidadosamente, decida largar a academia para seguir uma carreira convencional no mercado financeiro (sim, aparentemente isso é possível nos EUA) com todos os benefícios e o prestígio decorrentes do emprego mas com uma diferença: dedicando 10% de seu rendimento mensal para salvar a vida de crianças em países pobres. Qual dentre as duas escolhas é a mais correta? 

A primeira vista estaríamos lidando com duas ações igualmente "altruístas". Tanto Susana como Mateus privilegiam o bem comum, cada a um a seu modo. Qualquer tentativa de priorização por meio de critérios objetivos acabaria revelando apenas as preferências diferentes, nesse caso igualmente legítima, de cada um dos doadores.

Para o filósofo e ativista Peter Singer (Princeton) perguntas como essa não apenas possuem uma resposta correta como reconhecer esse fato é urgente para mudarmos o mundo. Em seu ensaio The Logic of Effective Altruism, publicado no último fórum de discussões da Boston Review, Singer desafia a proposição convencional segundo a qual a filantropia deveria atender apenas "às escolhas do coração", de natureza subjetiva, oferecendo um argumento utilitarista para justificar a filantropia (ver abaixo sua Ted Talk com legendas em espanhol).

Voltemos ao exemplo anterior. Segundo Singer, um altruísta eficaz deveria seguir o exemplo de Mateus - doar parte de seus recursos de Wall Street para salvar crianças pobres - e não de Susana -  preservar algumas belas flores do Metropolitan - por dois motivos. Em primeiro lugar porque o alvo da filantropia de Mateus produzirá mais bem-estar agregado no mundo do que o de Susan. Nem a soma do prazer de todos os nova-iorquinos juntos equivaleria ao valor da sobrevivência de um criança em necessidade. De um ponto de vista utilitarista, portanto, nem todas as formas de altruísmo são igualmente legítimas: algumas produzirão consequências melhores do que outras.




Contudo - e eis o ponto principal do argumento de Singer - Mateus doa com a razão, e não com o coração. Isto é, ao maximizar o efeito de cada dólar recebido doando-o para  os esforços sistemáticos para a erradicação da malária (digamos) os resultados de suas ações não apenas ajudarão uma causa mais importante do que a de Susana como também ajudarão a convencer dezenas de outros altruístas em potencial que, dedicando parte de seu tempo ou recurso, fortalecerão outras organizações filantrópicas. Para Singer, o altruísmo importa. Mas o modo como o praticamos, de maneira eficaz ou passional, também.

O primeiro passo para uma doação moralmente eficiente seria calcular objetivamente os resultados da doação. Um altruísta eficaz precisa garantir que as instituições em questão sejam transparentes sobre suas metas e sobre seus gastos (o próprio Singer fundou uma organização que ajuda a encontrar instituições filantrópicas eficazes), de outro modo não poderíamos assegurar que estamos fazendo a coisa certa. Além disso, argumenta Singer, é preciso que o ato altruísta em si não seja entendido como um ato de "auto-sacrifício". Fazer o melhor que podemos para tornar o mundo um lugar melhor não deveria significar tornar nossas vidas miseráveis ou extremamente onerosas para as pessoas que amamos.  O caráter "passional" de doações como as de Susana tornam o ato de doar uma atividade esporádica e imprevisível, mais ligada às necessidades psicológicas momentâneas do doador do que às necessidades objetivas do problema a ser enfrentado:

Effective altruism is based on a very simple idea: we should do the most good we can [...] What unites all these acts under the banner of effective altruism? [...] we should not think of effective altruism as requiring self-sacrifice, in the sense of something necessarily contrary to one’s own interests. If doing the most you can for others means that you are also flourishing, then that is the best possible outcome for everyone. Many effective altruists deny that what they are doing is a sacrifice. Nevertheless they are altruists because their overriding concern is to do the most good they can. The fact that they find fulfillment and personal happiness in doing that does not detract from their altruism.

Ao longo de sua longa carreira, Peter Singer praticamente fundou a área de Ética Aplicada especialmente em seus trabalhos sobre ética animal e médica, alterando o modo como concebemos o debate sobre os direitos animais e o papel dos pacientes na medicina (uma boa visão de conjunto pode ser encontrada no livro Ética Prática, traduzido aqui pela Martins Fontes). A premissa básica de sua filosofia é a de que todas as grandes conquistas morais humanas foram realizadas pela expansão de um mesmo princípio de igualdade fundamental, segundo o qual a vida de todos conta igualmente, sejamos homens, mulheres, negros, brancos, humanos ou animais. Expandíamos esse círculo normativo a medida em que passamos a usar argumentos racionais para avaliar de que modo podemos maximizar o bem-estar da comunidade moral. Sua teoria do altruísmo eficaz (que talvez seja melhor compreendida como uma teoria da filantropia eficaz) representa mais uma tentativa de expansão racional do horizonte moral: precisamos doar racionalmente. 

Teorias morais utilitaristas são extremamente controversas. Dois problemas típicos seriam: (i) será que podemos contabilizar o bem de modo objetivo, como supõe a teoria? Como contabilizar, por exemplo, o sofrimento de três crianças sofrendo de malária em Bangladesh contra mil meninas indianas sem acesso a qualquer forma de educação ou proteção jurídica? (ii) Não haveria tipos "especiais" de obrigação que devemos uns aos outros e que, por serem nossos e de ninguém mais, possuem prioridade normativa sobre deveres impessoais de assistência no outro lado do globo terrestre? Porque salvar uma criança pobre de Bangladesh seria sempre mais importante do que retirar meus concidadãos abaixo da linha de pobreza, ou mesmo tornar minha cidade uma ambiente menos degradante? Algumas dessas objeções são levantadas pelos debatedores de Singer na Boston Review, dentre eles o economista Daron Acemoglu

Contudo, para além das dificuldades clássicas relacionadas aos utilitarismo, o ensaio de Singer deixa em aberto um problema conceitual extremamente importante para a teoria normativa: qual a relação entre demandas éticas, exigidas dos indivíduos, por um lado, e a esfera política, exigida de todos, por outro? Pode ser relativamente fácil aceitar que utilizar tempo e dinheiro excedentes para melhorar a vida daqueles em situação de extrema de pobreza é algo bom e urgente. Entretanto, e se o mesmo montante de tempo, dinheiro e compromisso individual fossem utilizados para transformar relações sociais injustas ou para demandar um maior controle sobre os gastos políticos relacionados às causas do sofrimento (como saúde vs. orçamento de defesa)?

Um exemplo simples pode ilustrar o ponto em questão. A expansão do horizonte moral nos séculos XIX e XX incluiu na cidadania efetiva pessoas que não eram proprietárias (i. e. somos iguais independente dos títulos que possuímos). Isso só foi possível graças à conquista de direitos e à proteção de liberdades fundamentais para todos, algo bem diferente da filantropia vitoriana defendida na época pelos mais abastados. Em outras palavras: foi preciso retirar privilégios tanto quanto concedê-los à alguém. Acredito que utilitaristas coerentes devem levar em questão que a mera existência de Wall Street, das regras vigentes do mercado global ou das patentes médicas, em certos momentos colocam um obstáculo à maximização do "bem comum" da humanidade tanto quanto a dificuldade de financiamento de organizações filantrópicas. 

Agradeço à Yohana Ventura pela discussão.


Leituras sugeridas:

- Peter Singer (et ali): "The Logic of Effective Altruism" (Boston Review)

- Peter Singer: Practical Ethics

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Lançamento: Oxford Studies in Political Philosophy

Foi lançado pela Oxford Press o primeiro volume da série Oxford Studies in Political Philosophy. Ela é dedicada a reunir bons trabalhos de filosofia política contemporânea a partir dos diferentes tópicos e problemas conceituais que constituem a disciplina. No primeiro volume, organizado por David Sobel (Syracuse), Peter Vallentyne (Missouri) e Steven Wall (Arizona), foram escolhidos, dentre outros trabalhos, Charles Larmore sobre os objetivos do liberalismo político, Philip Pettit sobre democracia e justiça social, John Simmons sobre direito territorial e Ian Carter sobre método e neutralidade axiológica na teoria política. Como de costume alguns dos capítulos já estavam circulando na forma de working papers (ver abaixo). 




Steven Wall: Introduction

Part I: Democracy
1: Philip Pettit: Justice, Political and Social
2: Geoffrey Brennan and Geoffrey Sayre-McCord: Voting and Causal Responsibility

Part II: Political Liberalism and Public Reason
3: Charles Larmore: Political Liberalism: Its Motivations and Goals
4: Dale Dorsey: Political Liberalism, Political Independence and Moral Authority

Part III: Rights and Duties
7: Helen Frowe: Can Reductive Individualists Allow Defense Against Political Aggression?
8: Eric Mack: Elbow Room for Rights

Part IV: Method



quarta-feira, 8 de julho de 2015

Chamada: Dossiê Desigualdades na revista Mediações (2015)

A revista Mediações do Departamento de Ciências Sociais da UEL encerra a chamada para o volume especial sobre Desigualdades e Interseccionalidades dia 15/08. O dossiê espera reunir artigos que tratem do tema da desigualdade a partir de diferentes perspectivas teóricas, inclusive abrindo espaço para artigos de natureza empírica ou metodológica sobre a mensuração de desigualdades. Informações podem ser consultadas no email: mediacoes@uel.br

Revista Mediações (segundo semestre 2015)



Chamada: Desigualdades e interseccionalidades

O desafio de compreender as dinâmicas (re)produtoras de desigualdades é um tema sempre atual nas Ciências Sociais e anima uma ampla gama de pesquisa. Nos diferentes campos teóricos que buscam iluminar essa agenda de investigações, amplia-se o reconhecimento de que o uso de análises interseccionais tem, cada vez mais, possibilitado contribuições dotadas de um elevado valor heurístico. Nesse dossiê, propomos reunir estudos teóricos e empíricos – inclusive aqueles que se debruçam sobre a reflexão em torno de parâmetros teórico-metodológicos – a respeito das diferentes dimensões das desigualdades que privilegiem a compreensão da complexa dinâmica das relações sociais, ou seja, das várias intersecções de marcadores sociais como gênero/sexo, idade/geração, raça/etnia, sexualidade/orientação sexual e classe, através das quais são atualizados conjuntos de relações de diferenciação/articulação nas sociedades capitalistas. A proposta pretende, portanto, abarcar pesquisas que tratem, nos planos teórico e/ou empírico, dos agenciamentos, do desenvolvimento das capacidades e de autonomia, das possibilidades e das limitações para o empoderamento de sujeitos subordinados, das interações entre estrutura social e atores em contextos específicos, dos efeitos de políticas públicas para a redução das desigualdades e ampliação da autonomia. Temáticas como, por exemplo, trabalho, política, família, direitos sexuais e reprodutivos, violência, cuidado, assistência social e pobreza constituem parte do conjunto de pesquisas possíveis para esse dossiê.

Organizadoras: Silvana Aparecida Mariano (UEL) e Márcia Macêdo (UFBA)
Data limite para recepção de artigos: 15 de agosto de 2015.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

O que podemos fazer contra a desigualdade?

O economista inglês Sir Anthony Atkinson (Oxford) notabilizou-se ao longo dos anos como um dos poucos economistas contemporâneos a dedicar sua carreira a explicar os mecanismos e consequências da desigualdade econômica. Qualquer estudante de economia passará pelas contribuições inovadoras de Atkinson no campo da mensuração da pobreza e da desigualdade - como, por exemplo, o índice de Atkinson que mede em uma escala de 0 a 1 a utilidade social da distribuição equitativa de um renda qualquer. De forma ainda mais notável Atkinson posicionou-se diversas vezes ao longo de sua carreira como uma das poucas vozes contrárias ao otimismo neoliberal da era Tatcher. Em geral, suas propostas de combate à pobreza e à desigualdade tendem a ser extremamente radicais dadas as instituições socioeconômicas tais como as conhecemos - e considerando o título de "sir". 

Em seu livro mais recente, Inequality: What can be done? (Harvard, 2015), Atkinson unifica mais uma vez economia e política. Por um lado, trata-se de um livro de economia sobre o crescimento vertiginoso da desigualdade nos países desenvolvidos. Por outro, trata-se de uma obra assumidamente engajada: o núcleo do livro é formado por uma série de propostas concretas para reduzir a desigualdade tomando o caso inglês como referência. Além da taxação progressiva da riqueza e da reestruturação do sistema de bem-estar social inglês, entre as propostas mais interessantes de Atkinson encontram-se duas ideias centrais para o igualitarismo do século XXI: um modelo de renda básica garantida e um sistema de "herança mínima universal".




Por renda básica de participação Atkinson propõe uma renda em espécie para todos aqueles e aquelas que participarem da reprodução social, independentemente das atividades serem remuneradas pelo mercado ou não. Desse modo, por exemplo, todos aqueles envolvidos em tarefas relacionadas ao cuidado de idosos e criação de filhos, ou ainda dedica à produção artística ou proteção ambiental, contariam como elegíveis para o rendimento. A vantagem de uma renda de participação é dupla: por um lado unifica e simplifica diferentes programas de transferências já existentes, eliminando os testes de meio e ampliando o universo de cidadãos elegíveis para além do mercado de trabalho, por outro o critério de qualificação adotado por Atkinson - "participação" - seria bem mais restrito do que a Renda Básica Universal de Van Parijs, tornando o programa aparentemente mais exequível do que o último (para um debate interessante entre os dois modelos, ver aqui).

Se a renda de participação tem por objetivo a igualdade pessoal de renda, com a herança mínima Atkinson enfrenta o problema da desigualdade de riqueza - segundo o diagnóstico oferecido por Thomas Piketty, uma forma ainda mais dramática de desigualdade, mesmo nos países mais igualitários do mundo, e que tenderá a se acumular no futuro dado um cenário de baixo crescimento econômico e decrescimento populacional - a famosa desigualdade r > g. A melhor solução para esse problema, segundo Atkinson, é instituir um sistema de herança compulsória mínima para todos os cidadãos a ser "sacada" no início da vida adulta. O sistema seria financiado pela taxação intergeracional e pela taxação patrimonial, "espalhando a riqueza" entre as gerações e garantido uma equidade básica de expectativas financeiras generalizada. A idéia possui um pedigree de respeito na história da economia política: Thomas Paine, os socialistas ingleses e o prêmio nobel James Meade estão entre os defensores de um sistema de herança cidadã como um tipo de direito fundamental de cidadania democrática. 

As propostas desenvolvidas por Atkinson em Inequality já havia sido apresentadas em outras ocasiões. Elas foram resumidas no artigo After Piketty? (2014) do British Journal of Sociology, no qual Atkinson debate os rumos de uma economia pós-pikettiniana. Thomas Piketty por sua vez resenhou positivamente o livro - como era de se esperar - para a revista NY Review (A Practical Vision of a More Equal Society). Piketty reconhece Atkinson como uma das suas principais influências acadêmicas e saudou as propostas como uma "nova [e bem-vinda] filosofia de direitos" democráticos:

"Personally speaking, I must say that I’ve always had certain reservations about the idea of an individual financial endowment. I’ve generally preferred a focus on guaranteed access to certain fundamental goods—education, health, culture among them. But whichever approach you may prefer, the idea of directly linking the estate tax to the allocation of rights that would be underwritten by such a tax seems to me extremely pertinent. The immense advantage of the solution set forth by Atkinson is that it makes it possible to clearly express the notion that the purpose of the estate tax is to underwrite “inheritance for all.” By directly linking the sum given to each person with estate tax rates, we may perhaps hope to change the terms of the democratic debate on this subject".

As diferenças entre a abordagem de Atkinson e Piketty não se resumem à diferença entre distribuição "em espécie" (Atkinson) versus distribuição "em tipo" (Piketty). Em uma entrevista recente para a revista Prospect, Atkinson expressou uma divergência importante em relação às teses de Piketty. Para o economista inglês, qualquer definição de capital deve possuir uma dimensão essencialmente política, e não pode ser confundida com a noção técnica de riqueza: capital é ter os recursos necessários para tomar decisões sobre alocações econômicas fundamentais, sejamos ou não os donos dos recursos em questão.

Capital is ... who decides about the decisions on production which one associates with capital as a productive factor.

Mais do que apenas distribuir riqueza, para Atkinson, precisamos garantir o direito de participação nos meios de produção.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

A economia política da crise Grega

O calote grego de 1,6 bilhão de euros no FMI está consumado. O Fundo não aceitou o pedido de prorrogação do governo grego comandado pelo Syriza, que já havia marcado para o próximo dia 5/7 um referendo no qual os cidadãos decidirão se aceitam - "sim" - ou não aceitam - "não" - a proposta de ajuda financeira emergencial oferecida pelo Eurogrupo (ver aqui sobre a eleição do Syriza na Grécia)

O economista e ministro da fazenda grego, Yanis Varoufakis, postou em seu blog a sua justificativa para o referendo grego tal como apresentada na última reunião do Eurogrupo (ver também a brilhante entrevista do Varoufakis para a BBC na qual ele faz a âncora perder a compostura). Para Varoufakis, o referendo seria a opção "'ótima" para todos os envolvidos: caso o governo grego aceitasse a proposta unilateralmente, insistindo no pacote de austeridade, ela seria barrada pelo congresso grego e, caso fosse finalmente aprovada, dificilmente a implementação da austeridade contra a população grega seria viável na atual conjuntura do país. "Nós demos as pessoas que vivem sob a pior depressão econômica uma chance de considerar suas opções", justifica Varoufakis, "nós tentamos usar a democracia como um meio de solucionar o nosso impasse". 

Cinco anos de austeridade fiscal levaram o país a uma queda de 25% do PIB e uma taxa de desemprego astronômica de 60% entre os mais jovens. Segundo o economista Joseph Stiglitz dados como esses tornariam as demandas da "Troika" (FMI, Banco Central Europeu e a Comissão Européia) de superávit primário sobre a Grécia totalmente despropositadas. Uma política eocnômica da Troika seria punitiva na visão do Stliglitz na medida em que os empréstimos anteriores foram usados majoritariamente para o pagamento de credores privados - em muitos casos bancos alemães e franceses.

É por esses motivos que Stiglitz defendeu o voto "Não" em um artigo para o Project Syndicate:

It is hard to advise Greeks how to vote on July 5. Neither alternative – approval or rejection of the troika’s terms – will be easy, and both carry huge risks. A yes vote would mean depression almost without end. Perhaps a depleted country – one that has sold off all of its assets, and whose bright young people have emigrated – might finally get debt forgiveness; perhaps, having shriveled into a middle-income economy, Greece might finally be able to get assistance from the World Bank [...] By contrast, a no vote would at least open the possibility that Greece, with its strong democratic tradition, might grasp its destiny in its own hands. Greeks might gain the opportunity to shape a future that, though perhaps not as prosperous as the past, is far more hopeful than the unconscionable torture of the present. 

Sabemos como iríamos votar.