quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Somos todos Charlie?

Esta é a segunda de uma série de intervenções originais escritas por cientistas políticos, antropólogos e filósofos acerca do atentado ao periódico satírico francês Charlie Hebdo. As diferentes contribuições discutem o que o Caso Charlie Hebdo representa para questões de tolerância, direito de expressão, integração cultural e violência nas democracias contemporâneas. As posições expressas em cada post são - como não poderiam deixar de ser - estritamente autorais.


Somos todos Charlie? 

Por Renato Francisquini

Crimes como o ocorrido no último dia 7 de janeiro na redação do jornal francês Charlie Hebdo logram, de imediato, um posto no extenso rol de barbaridades que marcam a História da humanidade. Por certo as gerações futuras o recordarão com pesar. E serão elas, mais do que os que o presenciamos – diretamente ou através dos canais de mediação –, capazes de julgar com o devido distanciamento episódio desde já tão lamentável. A gravidade do assassinato de 12 pessoas no exercício de sua profissão (ou por causa dele) inspirou reações por parte de atores políticos e sociais, cidadãos de todo o mundo e das mais diversas orientações ideológicas, filosóficas e religiosas. Nas ruas de Paris e alhures, homens e mulheres foram às ruas demonstrar apoio às vítimas e seus familiares, se contrapor ao fundamentalismo religioso, pedir punição aos responsáveis, entre outras causas menos dignas de nota. Alguns assustados, outros tantos, revoltados e indignados. Unia a todos o repúdio à violência perpetrada naquela manhã.
Considero, como potencialmente a unanimidade dos que se debruçaram sobre o fato, obviamente abominável que qualquer pessoa tenha de morrer pelas ideias que sustenta. Cerro fileira ao lado de todos os que condenam com veemência a execução orquestrada (mas não só ela, incluo aí a prisão, a intimidação e outras formas de ameaça) dos que defendem crenças das quais discordamos, ainda que de forma intensa. A tolerância é uma das virtudes centrais de uma sociedade democrática, livre e justa, e dela não podemos abrir mão.
O lamentável episódio, como não poderia deixar de ser, trouxe à tona um debate sobre o estatuto das liberdades de expressão e imprensa, os seus limites e consequências – questões sobre as quais não há atualmente, e provavelmente não haverá em tempo algum, consensos disponíveis. Seria difícil estipular quantos, dos que se manifestaram a respeito do crime contra os jornalistas do Charlie Hebdo, relacionaram os assassinatos a uma cruzada contra a liberdade de expressão. Para eles, o livre discurso seria um direito natural e “sagrado”, que permite a todos ilimitadamente formular e trazer a público informações, opiniões e outras formas simbólicas que representam uma maneira particular de entender o mundo que nos cerca. Estou de acordo com essa ideia geral, porém apenas em parte. Explico por que.
Reações condenáveis de intolerância
A visão acima, de natureza profilática, sustenta que ao Estado e à opinião pública (mas, sobretudo, ao Estado) não deve ser conferida a prerrogativa de definir o que pode e o que não pode ser objeto da livre expressão de ideias. Até aqui, de acordo. Atribuir ao governo ou a qualquer instituição coercitiva a possibilidade de, discricionariamente, vedar a publicação de um determinado ponto de vista, considerado equivocado ou ofensivo pelos que ora controlam o aparato estatal ou por maiorias morais, é um método eficaz de corroer valores que todos nós de alguma forma consideramos caros à democracia. Todavia, se tomada de forma absoluta e indiscutível, a leitura profilática pode ter o mesmo efeito. Quando baseada em uma concepção segundo a qual somos todos autônomos e, portanto, capazes de absorver e interpretar os conteúdos aos quais estamos expostos, essa posição justificaria a liberdade de expressar ideias racistas, sexistas, homofóbicas e outras de caráter notadamente intolerante, indistintamente. Discursos, estes, vale dizer, passíveis de criminalização em várias sociedades consideradas liberais, incluindo o Brasil.
O filósofo norueguês Jon Elster nos alerta para o fenômeno das “preferências adaptativas”, isto é, para o fato de que a nossa capacidade de participar como membros plenamente livres e iguais da sociedade depende inevitavelmente do contexto discursivo no qual somos socializados. Se este contexto é o de uma imprensa “livre” para publicar textos e imagens que zombam de forma chula e brutal de características pessoais ou de símbolos que compõem a identidade pessoal e coletiva de alguns indivíduos, fomentamos uma sociedade que atribui a parte de seus membros condições menos favoráveis de exercer as várias liberdades consideradas fundamentais, entre elas a própria liberdade de expressão. Com isso, corremos o risco de fazer apodrecer desde o seu núcleo, a saber, a discussão pública livre e aberta, o próprio sistema democrático e os valores e práticas que lhe são imprescindíveis, como a já mencionada tolerância.
Embora não seja leitor do Charlie Hebdo, conferindo algumas das edições da revista me parece que a publicação representa justamente o tipo de material capaz de deteriorar as bases em que se assenta o clima geral de tolerância com a diferença. Charges claramente ofensivas aos símbolos religiosos islâmicos não contribuem para a inserção igualitária de uma enorme população que, para agravar a situação, encontra-se marginalizada no país em que nasceram ou no qual escolheram (ou não) viver. Excluindo de antemão a censura prévia, a prisão e as ameaças, confesso não estar bem claro para mim qual seria a melhor maneira de lidar institucionalmente com essa questão (multas? direitos de resposta mais eficazes?). O que não podemos é continuar interrompendo este debate em nossas sociedades. Enquanto a sociedade seguir impedida, por uma opinião pública encastelada nas torres de marfim dos grandes conglomerados de imprensa, até de discutir as condições mais adequadas de evitar a profusão de patologias sociais que promovem o preconceito e a exclusão – que, por algum motivo, não chegam a nos surpreender –, seguiremos nos surpreendendo com reações violentas e condenáveis de intolerância.
Renato Francisquini é doutor em Ciência Política pela USP.  
O texto tem post cruzado com o Observatório da Imprensa.