segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

E se Estivessem Vivos?

Esta é a quarta de uma série de intervenções originais escritas por cientistas políticos, antropólogos e filósofos acerca do atentado ao periódico satírico francês Charlie Hebdo. As diferentes contribuições discutem o que o Caso Charlie Hebdo representa para questões de tolerância, direito de expressão, integração cultural e violência nas democracias contemporâneas. As posições expressas em cada post são - como não poderiam deixar de ser - estritamente autorais


E se Estivessem Vivos?

Por Álvaro Okura

A despeito da atrocidade que cometeram, gostaria de chamar a atenção para a ausência de qualquer discussão a respeito da justiça e da legalidade na execução dos responsáveis pelos assassinatos na Charlie Hebdo e no Kosher judaico: Cherif, Said Kouachi e Amedy Coulibally. Enquanto Coulibally mantinha reféns no Kosher, Cherif e Said e trocavam tiros com a polícia em uma gráfica no subúrbio da cidade, as forças de segurança articularam uma ação simultânea que resultou no assassinato de todos os “terroristas”  envolvidos, além de quatro reféns.

Ao contrário dos outros mortos, à vida dos três terroristas nunca foi rendida uma homenagem. Os minutos de silêncio, as flores e o choro não lhe foram concedidos. Mesmo entre os condenados à pena de morte o respeito aos rituais funerários, o direito às últimas palavras e à benção são respeitados. Os terroristas franceses não tiveram essas concessões, seus corpos foram enterrados em lugares secretos e sem identificação. Na reconstrução da dor e dos fatos, as pessoas capazes de representar suas vozes - seus pensamentos, planos e valores - não são convocadas a falar. Há uma incitação a falar deles, mas jamais por eles. Ao contrário do que ocorre com as vítimas, seus amigos e mães não são alvo de misericórdia e comiseração.  Suas memórias foram relegadas ao silêncio. Não sabemos, não compreendemos. Podemos dizer ainda que existe uma demanda por não entendimento sobre a base de que nenhum sujeito razoável seria capaz de compreender tais atos.

Apesar de automaticamente identificados como terroristas, importante ressaltar que nem os irmãos Kouachi nem Amedy Coulibally eram suicidas. Ao contrário da imagem clássica do homem-bomba e a suposta disposição ao martírio tipicamente “terrorista”, nenhum deles tirou a própria vida com os atentados: foram mortos pela polícia. Amedy mantinha reféns no açougue judaico, mas a alegação que os irmãos Kouachi representavam risco à vida de outros inocentes é contestável. Havia opções à polícia francesa. O último recurso da pena capital, executado pela própria polícia, foi utilizado sem contendas.  No entanto, este fato em particular não gerou nenhum grande interesse, nenhum grande debate, aparentemente apenas alívio. À execução dos terroristas corresponde o enterro anônimo, no silêncio, no segredo.

Em casos de atentados violentos, como o que ocorreu em Paris, parte-se do suposto que os responsáveis são sempre fanáticos e impermeáveis a qualquer negociação capaz de dissuadi-los. A imagem da negociação impossível conta com ao menos dois pressupostos. O primeiro é a ideia de que jihadistas sentem orgulho em morrer pela causa, em tornar-se mártires. O segundo que, ao contrário de meros criminosos que calculam riscos, lucros, benefícios e custos, para os “fanáticos” se entregarem com vida nunca aparece como opção. Diálogos impossíveis com mentes perturbadas reivindicando demandas impossíveis, cuja solução – presumida por nós, ocidentais (ou quasi ocidentais), – é a morte.

Tentar compreender a validade do protesto violento – a inaceitabilidade das sátiras/charges consideradas ofensivas – é constantemente vetada sob a acusação de que culpar as vítimas pela intolerância alheia é inocentar os terroristas. Mas ainda antes de tentar compreender os seus motivos, cabe perguntar se tinham o direito de se manterem vivos. E se estivessem vivos? Se os tivessem mantidos vivos, mesmo que condenados à prisão perpétua, o que estaríamos assistindo? Quais tipos de problemas políticos ou morais se imporiam às autoridades? Qual a reação na opinião pública frente a estas vidas?

Se os cidadãos franceses Cherif, Said Kouaschi e Amedy Coullibaly estivessem vivos, presos e acusados/condenados de terrorismo quais seriam seus direitos? Em que tipo de prisão seriam colocados? Teriam direito a advogado(a) imediatamente? Qual o tempo de incomunicabilidade? Quais são as autoridades responsáveis pela tomada de depoimentos? Os procedimentos investigatórios e processuais são os mesmos do direito comum ou devem ser conduzidos por instâncias especiais, como tribunais militares ou internacionais? Quais os limites da defesa na publicação de informações do processo ou de acesso às informações? Os habeas corpus, protestos por liberação, cartas de apoio, manifestos favoráveis à soltura seriam permitidos ou tolerados?

Foucault havia sugerido que em democracias dedicadas à vida em liberdade a pena capital aparece apenas como “limite, escândalo e contradição”. A capacidade de impor a morte a seus recalcitrantes é aquilo que os estados de direito tentariam pouco a pouco impor com um regime de invisibilidade; aquilo que não se dá para ver, que tenta se manter em segredo, em silêncio. “O que existe, nesse longo processo de nascimento da biopolítica, é uma desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos rituais que a acompanham.” (Foucault, M. A história da sexualidade: Volume I).

No entanto, não parece ser esta a evidência no caso Charlie Hebdo. Apesar de todos os treinamentos militares, da astúcia e da convicção fanática que motivava os terroristas, a polícia francesa deu provas de sua capacidade não de garantir a vida de seus cidadãos – tarefa que já havia falhado –, mas de causar a morte a qualquer um que ouse ameaçar a vida (dos seus) na cidade. O sucesso da operação só não foi considerado maior porque não conseguiu impedir a morte de quatro reféns. A caça e o cerco dos terroristas foram transmitidos por várias agências de notícias ao vivo, não em segredo. Então, cabe perguntar, quais são os raciocínios que nos permitem não só tolerar, mas compreender, apoiar e mesmo nos sentirmos aliviados com a morte daqueles e daquelas qualificados como terrorista?

Em outro plano de reflexão, é interessante notar como os estados dedicados ao combate ao terrorismo internacional optam, num número elevado de ocasiões, pelo direito de matar ao invés do direito de punir os acusados desse crime. Do ponto de vista da estratégia de contraterrorismo, matar os líderes ou os culpados de atentados terroristas não parece algo inteligente a se fazer. As doutrinas de prevenção ao terrorismo costumam prever um lugar privilegiado à obtenção de informações e estratégias de inteligência no desmantelamento das redes do terror. Desbaratar os nós que os ligam a uma vasta rede internacional dedicada à jihad. Deste ponto de vista, é evidente a utilidade e necessidade de que líderes, como Osama Bin Laden, fossem capturados vivos.  Então, por que não são mantidos vivos? No cálculo frio das decisões políticas centrais não foi certamente o horror que motivou o assassinato dos extremistas franceses.

Karina Kiordela afirma que a incitação ao horror é um dos combustíveis da máquina de legitimação do direito de assassinar nas/das democracias contemporâneas, especialmente no tratamento do terrorismo. Foucault lembra que, apesar do longo processo de oclusão da morte, o direito da espada – a capacidade soberana de fazer morrer – não pode jamais ser abolida do horizonte da dominação estatal. “O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir.” O caso de assassinatos de terroristas é interessante para pensar nas ocasiões em que o estado exerce tranquilamente, sem resistência popular, o seu direito exclusivo de matar sem cometer necessariamente um crime. Envolvidos na operação são tratados como heróis dignos de medalha.

Vale pensar nestas raras ocasiões, embora cada vez mais constantes, em que estados nos lembram da sua potencialidade letal permanente de atingir a qualquer um – mesmo, e especialmente, os mais treinados, dedicados e intransigentes opositores. Vale pensar por que nosso horror também não foi direcionado a estas modalidades letais de atuação dos estados no contraterrorismo; desde os novos drones à velha polícia. Bin Laden, Al-Zarqawi e tantos outros considerados líderes terroristas tiveram o mesmo destino. Uma política deliberada de extermínio – ao contrário da aplicação do direito – tem sido a tendência predominante.

Talvez tenhamos encarado com naturalidade a morte dessas pessoas, enquanto bradávamos nosso direito pela liberdade de expressão e pensamento, porque já imaginávamos que haviam escolhido morrer. Escolheram morrer porque suas convicções intolerantes e suas formas de vida “pré-modernas” levaram a estas atitudes fanáticas. Escolheram morrer porque sabiam que não teriam qualquer chance contra as forças de segurança do estado. Porque todos nós “sabemos” que a morte aguarda os responsáveis por este tipo de atrocidade a que chamamos de terrorismo. A verborragia alucinante que se propôs a defender e falar da nossa liberdade, de nossos direitos, de nossa própria tolerância e secularismo é acompanhada do mutismo e silêncio a respeito de nossas próprias formas de veneração da morte, de aprovação do castigo último e de nossa adesão a certas formas de violência.


Álvaro Okura é doutorando do Departamento de Ciência Política da Unicamp.