quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Livro: A Posição Original

Uma das características constitutivas da teoria política contemporânea é o esforço de oferecer argumentos orientados por problemas, sejam eles normativos, empíricos ou conceituais, em detrimento de grandes narrativas intelectuais. Sem negar o valor da história das ideias ou da necessidade permanente de diagnósticos de época, é plausível afirmar que a teoria política hoje é essencialmente motivada por problemas e que as grandes obras produzidas no campo ao longo das últimas cinco décadas reconhecem, direta ou indiretamente, a prioridade desse objetivo. 

Dentre as principais contribuições para a mudança de perspectiva na teoria política a obra de John Rawls, e o seu famoso argumento da Posição Original, ocupam um lugar de destaque. Tal como formulado originalmente por Rawls em sua obra Uma Teoria da Justiça de 1971, o argumento da posição original procura apresentar uma resposta determinada a um dos problema normativos centrais de nossas sociedades: como definir uma distribuição justa de recursos sociais? Sistematizado na forma de uma situação de escolha racional, o argumento justifica a escolha de princípios de justiça a partir de uma pergunta: quais critérios distributivos escolheríamos para organizar as principais instituições de nossas sociedades caso não conheçamos algumas de nossas características pessoais como gênero, raça, classe social e produtividade individual? Segundo o argumento rawlsiano, até mesmo agentes racionais motivados por considerações estratégicas tenderiam a escolher princípios distributivos igualitários e, mais especificamente, critérios de organização socioeconômica que maximizam a posição dos menos beneficiados pela cooperação social, uma vez que as piores posições permaneceriam como uma possibilidade lógica aberta a todos os agentes envolvidos no contrato social. 

Desde então uma verdadeira enxurrada de artigos tem sido dedicada ao assunto, envolvendo não apenas teóricos políticos mas também economistas e especialistas em teoria dos jogos. O argumento da posição original permanece em disputa mesmo entre os adeptos do igualitarismo rawlsiano. Para alguns, o argumento não passa de uma "parafernália" analítica utilizada pelo autor para ilustrar o argumento moral por trás das teorias contratualistas - e, portanto, passível de ser substituído por reelaborações mais cuidadosas, tal como a teoria desenvolvida por Thomas Scanlon. Já para outros, o argumento não apenas é fundamental para entendermos a força da teoria rawlsiana, como representaria a principal contribuição filosófica do autor para a filosofia política contemporânea. 

Timothy Hinton (North Carolina) acaba de publicar o livro The Original Position (Cambridge Press) que tem por objetivo reunir algumas contribuições recentes nesse debate. A obra é parte da nova coleção da Cambridge voltada para a pesquisa de argumentos filosóficos clássicos (outro livro da série é dedicado, por exemplo, ao célebre Dilema do Prisioneiro). No livro, a posição original é abordada tanto a partir de seus elementos analíticos mais importantes, tais como o papel da teoria da ação racional (Gaus & Thraser) e os argumentos da estabilidade e do ônus do compromisso (Weithman e Waldron), bem como a partir de sua recepção em teorias da justiça rivais, como a teoria de Nozick (Chirstman), de Dworkin e a crítica marxista de G. A. Cohen (Estlund). A introdução e alguns dos capítulos em formato working paper encontram-se disponíveis abaixo.



- Hinton (ed.): The Original Position (Classic Philosophical Arguments)

Introduction: the original position and The Original Position – an overview Timothy Hinton
1. Justice as fairness, utilitarianism, and mixed conceptions David O. Brink
2. Rational choice and the original position: the (many) models of Rawls and Harsanyi Gerald Gaus and John Thrasher
3. The strains of commitment Jeremy Waldron
4. Our talents, our histories, ourselves: Nozick on the original position argument John Christman
5. Rawls and Dworkin on hypothetical reasoning Matthew Clayton
6. Feminist receptions of the original position Amy R. Baehr
7. G. A. Cohen's critique of the original position David Estlund
8. Liberals, radicals, and the original position Timothy Hinton
9. The original position and Scanlon's contractualism Joshua Cohen
10. The 'Kantian roots' of the original position Andrews Reath
11. Stability and the original position from Theory to Political Liberalism Paul Weithman
12. The original position in the law of peoples Gillian Brock


sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Nota da ANPOCS em defesa do Estado de Direito no Brasil

A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), principal associação de cientistas sociais do Brasil, publicou uma nota contra a abertura do pedido de impeachment da presidente da república Dilma Rousseff, recentemente aceito pelo líder da bancada conservadora no Congresso Nacional. A nota da Anpocs soma-se a de outras associações de cientistas brasileiros e reflete a preocupação dos profissionais da área em relação aos motivos por trás da abertura do pedido e a perplexidade com que parte da sociedade civil e da grande mídia tem apoiando a possibilidade de ruptura da ordem democrática no país. A nota pode ser lida abaixo:


Nota da Diretoria Executiva da ANPOCS em Defesa do Estado Democrático de Direito
A diretoria executiva da ANPOCS vem a público manifestar sua preocupação com iniciativas de interrupção de um mandato presidencial conquistado legalmente e legitimado pelo voto direto da maioria da população brasileira.
Não vivemos em um sistema parlamentarista, em que um voto de desconfiança poderia implicar no afastamento do chefe do Executivo dentro do estrito respeito às regras do jogo vigente apenas pela perda de apoio parlamentar ou popular. Também não contamos com o instituto do recall, que poderia se constituir em uma forma legítima de afastamento, com base no voto, de um governante mal avaliado.
Em um sistema presidencialista, marcado por mandatos fixos, o impeachment é medida extrema, cuja utilização apenas se justifica no caso do cometimento de um crime de responsabilidade pelo chefe do Executivo. O seu uso como expediente voltado ao afastamento de um governante porventura impopular, mal avaliado ou de cujas políticas se discorde fere gravemente o regime democrático.
O impedimento do presidente da República também requer uma sólida e convincente fundamentação jurídica, sem o que se torna instrumento de mera conveniência política e de interesses de curto prazo. Sua utilização sem que esteja claro o cometimento do crime de responsabilidade se constitui numa injustiça que compromete a credibilidade de nosso regime democrático, produzindo uma incerteza que afetará o exercício de futuros mandatos eletivos por governantes que – mesmo legitimados pelo voto – venham a enfrentar dificuldades políticas ou econômicas.
Por essas razões, consideramos iniciativas desta natureza – sem fundamento jurídico claro e na contramão de um processo de retorno à democracia construído e conquistado a duras penas pela sociedade brasileira – um risco para o Estado Democrático de Direito.
Presidente – José Ricardo Ramalho (UFRJ)
Secretário Executivo – Cláudio Gonçalves Couto (FGV-SP)
Secretária Adjunta – Emília Pietrafesa de Godoi (Unicamp)
Diretoria de Publicações – Adrian Gurza Lavalle (USP)


Stuart White: A desigualdade não é inevitável

O crescimento da desigualdade social nos países desenvolvidos tem sido objeto de intenso debate acadêmico nos últimos anos. A antiga tese sociológica que sustentava uma diminuição estrutural da desigualdade econômica em democracias estáveis tem sido posta em questão por economistas e cientistas políticas dedicados ao estudo da desigualdade. Esse é um debate importante também para países em desenvolvimento. Se provarmos que países que já passaram por seus ciclos de modernização econômica não apenas podem conviver com índices elevados de desigualdade econômica, mas também permitem que o fosso de renda aumente de modo constante, então o principal argumento econômico para tolerarmos a sua manutenção em níveis elevados em países em desenvolvimento também cai por terra. Isto é, se esse diagnóstico sobre as democracias ricas é verdade, então não temos mais um argumento verdadeiramente econômico para tolerarmos a desigualdade em nome do crescimento.

Explorar as consequências dessa discussão é, em linhas gerais, o pano de fundo intelectual de três obras recentes sobre desigualdade econômica resenhadas por Stuart White (Oxford) para a edição de novembro da Boston Review. Com ênfases e conclusões diferentes, os livros dos economistas Thomas Piketty, Anthony Atkinson e Paul Mason compartilhariam, para White, um objetivo comum, qual seja o de "rejeitar veementemente a ideia de que o aumento da desigualdade é o nosso destino". (Notemos que já contamos com uma boa tradução para o português do livro A Economia da Desigualdade de Piketty, um dos livros resenhados por White).

White procura mostrar como as três obras poderiam ser entendidas como uma tentativa de recuperar, para o século XXI, uma tradição socialista extremamente importante para a economia e a filosofia da metade do século passado, mas que foi algo esquecida pelos movimentos políticos desde então. Uma tradição que White costuma identificar como liberalismo alternativo (ver aqui um artigo de White sobre o assunto).

Para além das diferenças teóricas entre Piketty e Atkinson, ambos os economistas concordam que o igualitarismo contemporâneo precisa respeitar, de alguma forma, a função alocativa dos mercados - a atribuição de um sistema de preços a partir do qual podemos tomar decisões sobre o melhor uso de um estoque de recursos dados - mesmo quando essa função é aplicada ao mercado de trabalho. Contudo, isso não significa que precisamos aceitar a função distributiva dos mercados, isto é, a distribuição de benefícios e responsabilidades pessoais. Podemos preservar o mercado tal como conhecemos mas, ao mesmo tempo, transformar radicalmente as instituições distributivas, como a estrutura fiscal, o sistema de proteção social e o regime de propriedade. Não há nada que nos obrigue a aceitar as duas funções como os princípios fundamentais da organização social. Com algumas excessões importantes (ex.: G. A. Cohen) essa é uma distinção central feita pelo marxismo analítico, um grupo de cientistas sociais e filósofos o qual o próprio Piketty ajudou a compor durante um breve período.

Como afirma White:

"Piketty’s main message is that egalitarians can and should respect the allocative function of prices in a market economy—their role in determining how resources are used. For example, trying to redistribute from capital to labor by legislating wage increases interferes with the allocative function of wages (the price of labor). That policy will eventually reduce employment. So it is often better to use “fiscal redistribution”—taxes and transfers. Thus we correct the distributive effects of the market but do not obstruct the working of the price system—in particular, the role of wages in determining the allocation of labor. [...] This approach, with its emphasis on fiscal redistribution and a more egalitarian division of assets, fits firmly into a perspective one might call alternative liberalism. Alternative, because in contrast to the neoliberalism that has dominated U.S. and U.K. politics since the 1980s, this perspective sees a vital role for the democratic state in shaping economic distribution toward egalitarian objectives. And liberal because it affirms the centrality of the market and preserves a role for the private ownership of wealth". 


Entre as instituições distributivas defendidas por Piketty e Atkinson, encontram-se a chamada Renda de Participação, na qual todos os membro da sociedade (não apenas os cidadãos) são elegíveis para um rendimento anual de alguns milhares de dólares, (cerca de 4,500 dólares calculado para o caso inglês) condicionados à participação na esfera produtiva da sociedade. Essa participação, no entanto, não precisa ser necessariamente assalariada, e poderia remunerar outras tarefas igualmente importantes, mas subvalorizadas pelo mercado de trabalho, como a criação de filhos e idosos, a participação em associações civis e partidos políticos, e atividades artísticas e ligadas à proteção ambiental. Segundo Atkinson, a Renda de Participação poderia unificar de modo menos burocrático e mais equitativo (em termos de gênero e idade) os sistema de benefícios sociais vigentes e, além disso, substituir formas arbitrárias e ineficientes de isenções fiscais. Trata-se, nesse sentido, de uma versão alternativa da proposta de uma Renda Básica Incondicional.

Contudo, a mensagem mais forte dos livros de Piketty e Atkinson é clara: o fator economicamente mais relevante para explicar a volta da desigualdade não se encontra apenas na desigualdade de renda do trabalho, mas também na concentração da riqueza do capital. Os autores divergem sobre a melhor forma de combater esse aumento da desigualdade de renda do capital. Atkinson, na esteira de James Meade, opta por formas individuais de dotação de capital, como um sistema de herança social, ou poupanças subsidiadas, enquanto Piketty privilegia novas formas políticas de regulação e responsabilização sobre decisões econômicas. Para ambos os autores, entretanto, uma conclusão parece incontestável: o futuro do pensamento igualitário depende da tarefa de encontrar maneiras viáveis de assegurar uma reivindicação coletiva sobre o retorno do capital. Algumas dos principais argumentos de Piketty são explicados pelo autor em sua recente entrevista para a BBC (ver abaixo):

Por sua vez, Paul Mason em seu livro Postcapitalism (um artigo de Manson pode ser lido aqui) destaca aquilo que entende como o conflito insolúvel entre novas formas de tecnologia da informação e o antigo sistema de propriedade privada. Para Mason, a produção de conhecimento na era da informação, talvez a forma de insumo mais importante para o crescimento econômico hoje, nunca foi tão pública e (potencialmente) gratuita. Contudo, sistemas repressivos de propriedade intelectual estariam criando uma "escassez artificial" desses recursos comunais, do mesmo modo como o capitalismo industrial nos séculos XVIII e XIX tornou escasso o acesso aos recursos naturais comunais por meio do cercamento das antigas áreas comuns na Europa. Com o “cercamento digital” de Manson, seríamos todos obrigados a participar de regras sociais as quais não concordamos e não temos controle. Para colocar em outros termos, de um ponto de vista socialista, a tarefa de um JSTOR ou de uma Apple Store seria impedir a produção e circulação de artigos científicos e músicas on-line, uma circulação que por definição deveria ser usufruída por todos. Também para Mason a dotação da renda básica incondicional seria crucial para a produção e aprimoramento de tecnologias informacionais open source, formas não-remuneradas de atividade produtivas que não cabem no atual mercado de trabalho convencional.

Segundo Stuart White, as três obras são importantes na medida em que procuram defender dois argumentos interrelacionados: que a desigualdade econômica não é inevitável, e que uma maior participação social nas decisões econômicas é inevitável para qualquer forma de igualitarismo que tenha pretensão de ser politicamente relevante.


Agradeço Roberto Merrill pelo envio do vídeo da entrevista com o Piketty


sábado, 12 de dezembro de 2015

"Não cobiçarás a propriedade alheia"

Por Lucas Petroni

Acreditamos que vivemos em um mundo injusto. Acreditamos que as oportunidades sociais, a despeito de serem formalmente abertas aos talentos e a motivação de todos e todas, produzem resultados injustos diante de pessoas com recursos e histórias de vida diferentes. Em geral acreditamos também que a concentração de recursos sociais é, em grande medida, moralmente arbitrária em relação àquilo que somos ao nascer, em relação a nossa raça, classe ou gênero o ponto de partida nossos de vida. Concordarmos também que instituições democráticas são fundadas em um princípio de igual consideração e respeito por cada membro da sociedade. O igualitarismo, entretanto, discorda que o mero reconhecimento formal desse princípio seja suficiente para assegurar a justiça social. Em qualquer uma de suas muitas formas, a tradição de teorias igualitárias interpreta o reconhecimento do valor moral da igualdade como uma justificativa para a correção de distribuições injustas e relações assimétricas de poder. Para o igualitarismo, uma sociedade democrática justa seria aquela na qual as pessoas fossem também materialmente muito mais iguais do que somos hoje.

Entretanto, segundo uma famosa formulação do economista e filósofo conservador Friedrich Hayek, toda forma de pensamento igualitário estaria relacionado, de modo mais ou menos indireto, com o vício da inveja. "Quando nos indagamos a respeito da justificação das demandas [igualitárias]", afirma Hayek, "descobrimos que elas repousam no efeito do sucesso de algumas pessoas sobre os que são menos sucedidos ou, para colocar a questão de modo direto, repousam sobre o sentimento de inveja" (Igualdade, Valor e Mérito). Pior do que um simples contrassenso, o valor da igualdade que fundamenta teorias igualitárias seria uma espécie de vício moral. 




A idéia de que o valor da igualdade não passa de inveja disfarçada é uma objeção comum e, se verdadeira, extremamente problemática ao igualitarismo. A "objeção da inveja" - como podemos denominá-la - encontra-se presente não apenas nos escritos de filósofos conservadores do século passado, mas também encontra ressonância, de um modo menos elegante mas igualmente furioso, nos carros de som dos opositores de políticas sociais no Brasil. Nos últimos anos ele também passou a fazer parte do imaginário de algumas igrejas neopentecostais que interpretam na condenação bíblica da inveja um aliado contra políticas distributivas.

Mas não devemos nos enganar. Essa forma de objeção ao igualitarismo esta presente também em pensadores radicalmente contrários à moralidade religiosa convencional, tais como Nietzsche e Freud. Para o primeiro, por exemplo, a origem genealógica da moralidade contemporânea e, a fortiori, das reivindicações de justiça social, pode ser encontrada na internalização histórica do sentimento de ressentimento dos mais fracos em relação aos mais fortes. Com o tempo, afirma Nietzsche, os escravos foram inescrupulosos o bastante para fazer com que os seus senhores acreditassem que todos temos o direito de igual consideração moral e, portanto, igual reivindicação sobre o produto da cooperação social. 

Se é verdade que a busca por uma sociedade mais igualitária não passa de uma racionalização da inveja da propriedade alheia, então o empreendimento da justiça social como um todo estaria condenado de saída. Por que exatamente? Em primeiro lugar porque a inveja, para além da conotação religiosa, é uma emoção socialmente destrutiva e autocontraditória. Quando invejamos alguém somos capazes de atos atrozes, na maior parte das vezes velados, contra a pessoa invejada. No final das contas não nos importamos em vencer ou ter aquilo que o outro tem mas acabamos nos contentamos em minar as bases do sucesso alheio. O problema é que além de destrutiva a inveja é também uma emoção que incentiva estratégias autocontraditórias da parte daqueles que a vivenciam. Estratégias do tipo "puxar para baixo" não conseguem melhorar a imagem que temos de nós mesmos já que queremos, por definição, trazer o outro invejado para o nosso nível - por definição mais baixo do que o dele ou dela. Ao invés de aumentarmos a nossa auto-estima acabamos reconhecendo, ao contrário, a nossa própria inferioridade. Tal como a figura clássica do diabo dos cristãos - invejoso contumaz da criação divina - nunca nos tornamos melhores pela inveja. 

Por fim, a inveja é um problema sério para qualquer teoria da justiça que assume como dada a escassez dos recursos sociais. Podemos imaginar, é claro, que existam formas de organização social nas quais esse sentimento é impossível já que todos teriam o bastante. O antigo - e ainda poderoso - slogan "de cada um conforme suas habilidade, para cada um conforme suas necessidades" seria um exemplo dessa aspiração. Nesse caso a objeção da inveja não seria um problema, ou pelo menos seria um problema temporário. Contudo temos boas razões para sermos céticos quanto ao pressuposto de abundância de recursos sociais. É provável que os recursos naturais necessários para a vida em uma sociedade industrial tais como as nossas nunca sejam o suficiente para atingirmos um nível de não-inveja para todos. De modo muito mais relevante, é possível também que a natureza humana seja de tal forma complicada que mesmo que solucionássemos definitivamente o problema da escassez generalizada, ainda assim enfrentaríamos o problema da escassez relativa: invejaríamos a posse uns dos outros. Tal como reconhecido por Thomas Hobbes, a inveja, ou o "desejo de glória" a despeito do outro, é uma fonte permanente de conflito entre nós. 

Seja como for, para os efeitos do argumento assumiremos que a objeção da inveja é, prima facie, plausível e, se verdadeira, extremamente problemática para o igualitarismo. Antes de tentarmos enfrentar a objeção, contudo, é prudente tentar definir melhor os termos da disputa. O que é inveja afinal?

Na famosa definição de Aristóteles inveja é o sofrimento pessoal diante da fortuna alheia. Nesse sentido contextos de inveja envolvem pelo menos duas relações básicas. Primeiro, uma relação de competição entre duas pessoas: o invejoso e o invejado. Segundo, a existência de um bem ou algo que, aos olhos do invejoso, caracterize uma perda ou uma falta. O fato do outro possuir um bem, ou apresentar uma qualidade especial, ou desfrutar de bem-estar - para ficarmos com três exemplos comuns - é uma fonte constante de sofrimento ou inquietação quando comparados com os meus bens, as minhas qualidades e ao meu bem-estar. Invejar é diferente de ter ciúmes. Enquanto a primeira é uma emoção essencialmente competitiva e centrada no competidor, a segunda é a causada pela dor da ausência do objeto amado, pouco importa em relação à quem. Quando invejamos, invejamos alguém, quando sentimos ciúmes, o mundo todo é uma ameaça em potencial. De maneira mais analítica, e seguindo a proposta da filósofa Sara Protasi, inveja pode ser definida como uma reação adversa a uma percepção de inferioridade em relação a um outro. Essa percepção pode ser justifica ou não. Trata-se de um ponto importante e voltaremos a ele esse a seguir. 

Reivindicações de justiça social parecem a primeira vista se encaixar nessa formula. O sujeito da inveja (o menos beneficiado pela cooperação social) percebe uma forma desvantajosa de inferioridade em relação ao objeto invejado (o mais beneficiado pela cooperação social) e, assumindo que ele não pode alterar esse fato, passaria a tentar estragar a riqueza alheia. Essa é em poucas linhas a "compulsão socialista" segundo Hayek. 

É importante ressaltar que não é totalmente claro se teorias libertarianas - tal como a teoria das titulariedades adquiridas de Robert Nozick - são de fato compatíveis com a objeção da inveja. Essa afirmação pode parecer surpreende visto que auto-declarados libertarianos tendem a endossá-la. Todavia teorias libertarianas da justiça são fundadas no princípio moral de igual propriedade de nossos corpos e poderes pessoais e não no valor do mérito ou do aumento das oportunidades sociais.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Por que eles odeiam tanto?

Por Lucas Petroni

A quantidade de ódio político após as eleições do ano passado não encontra precedentes na história recente da esfera pública brasileira. De modo geral esse ódio tem autoria e destino. Ele é instanciado pela classe média-alta escolarizada dos centros urbanos. Tende a ser majoritariamente branca (ou pelo menos auto-entendida como tal), masculina e com renda familiar superior a 7 mil reais. O alvo é a política representativa de modo geral - mas não a política dos empresários, dos juízes ou da imprensa. Acima de tudo, dois objetos do ódio são detestados: o ex-presidente Lula e a líder do atual governo, a presidente duas vezes eleita democraticamente, a economista Dilma Roussef, e o seu partido político, o PT.

Alguns exemplos extremos de atos de ódios talvez sejam necessários para ilustrar o que entendemos por ódio político. Durante protestos contra o governo federal em agosto, em Jundiaí, no interior de São Paulo, a sede do partido da presidente (PT) foi atacada com uma bomba incendiária, enquanto efígies de Lula e Dilma foram simbolicamente linchadas e enforcadas no principal viaduto da cidade. Um mês antes, a sede do Instituto Lula, equivalente à esquerda do think tank Instituto FHC, já havia sido alvo de uma bomba durante a madrugada - uma ação que certamente passaria por ato de terrorismo doméstico outros países. Em novembro, manifestantes anti-Dilma acampados em frente ao Congresso Nacional abriram fogo contra uma marcha de mulheres que lutavam contra a alteração da legislação sobre e direitos reprodutivos no país.

Podemos afirmar com razoável grau de certeza que o uso do instrumento do impeachment neste mês pelo líder político conservador e presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), será o gatilho para mais uma rodada de ódio e ressentimento público contra o governo eleito. Este post não pretende oferecer argumentos normativos sofisticados pelos quais poderíamos condenar essas ações. Uma pergunta mais interessante do ponto de vista teórico é: por que eles e elas odeiam tanto? 



A presidenta Dilma e o ex-presidente Lula simbolicamente linchados e enforcados em Jundiaí no interior de São Paulo (15/03)/Fabiano Maia.


A primeira maneira de tentar responder a pergunta é entender por que odiamos em geral. Segundo uma teoria psicológica influente, desenvolvida pelo psicólogo norte-americano Robert Sternberg (Cornell), o sentimento de ódio é composto por várias emoções diferentes que, a partir do momento em que são rotinizadas em nossa socialização, passam a fazer parte de nossa autoimagem enquanto sujeitos morais (um bom resumo da teoria pode se encontrado aqui). A teoria conhecida como "teoria do ódio em dois níveis" (duplex theory) é fundada em três emoções negativas elementares: (i) repulsa, ou negação de intimidade com o objeto odiado, (ii) raiva, ou emoção exasperada diante do objeto odiado e (iii) obsessão, ou comprometimento (de ódio) com o objeto odiado. Cada uma delas caracterizaria para o psicólogo um tipo instintivo - e esse ponto é importante - de ódio aos quais todos nós estamos sujeitos: (i) o "ódio repulsivo" da negação da intimidade, (ii) o "ódio quente" da raiva e (iii) o "ódio obsessivo" daqueles fixados no objeto odiado. 

Os diferentes personagens do teatro do ódio político brasileiro ilustram facilmente a tripartição de Sternberg. Em primeiro lugar temos o ódio repulsivo contra o governo presente nos jantares de família em Pinheiros (Barra da Tijuca, Boa Viagem, etc.). Trata-se de um ódio repulsivo não apenas contra o PT mas também contra a classe política em geral (quantos entusiastas de Eduardo Cunha, de fato, o convidariam para um jantar em suas próprias casas?). Em seguida, temos o ódio quente dos motoristas de taxi e donos de bar, com ideias altamente elaboradas sobre como poderíamos utilizar de violência hipotética contra os "comunistas" - interessante notar que o próprio uso do fogo é bastante comum nessas elocubrações. Finalmente, o ódio paranóico de alguns analistas políticos contra com a figura dos dois últimos presidentes do país parece representar bem o ódio obsessivo de Sternberg. Na maior parte desses analistas, por exemplo, existe um comprometimento explícito, e de conhecimento comum, em odiar publicamente uma parte do quadro político brasileiro sem se preocupar com isso em parecer ridículo frente a sua própria identidade profissional.

Os exemplos são simplificações, é claro. Mas nos ajudam a entender uma dimensão importante do ódio: sua inevitabilidade. Enquanto uma emoção, não poderíamos ser pessoas se não pudéssemos sentir cada uma dessas três formas de ódio em nosso dia a dia. Na verdade, formas instintivas de ódio não apenas são impossíveis de serem suprimidas, mas podem ser potencialmente produtivas para a política democrática. Pensemos, por exemplo, nos perigos inversos da apatia política e do desprezo, uma emoção radicalmente contrária ao ódio, para a manutenção de instituições democráticas. Quando desprezamos alguém tratamos o outro com indiferença, como alguém não-importante ou irrelevante para as nossas vidas. Nesse sentido odiar também é uma forma de engajamento. 

O problema é que a teoria de Sternberg não termina por ai - assim como o ódio político instintivo e anedótico também não para por ai. Estruturas emocionais de ódio possuem uma segunda camada muito mais destrutiva do que a primeira. Quem odeia necessariamente passa a produzir narrativas sobre o objeto odiado. Quando nos socializamos pelo ódio passamos a construir caricaturas moralizantes sobre o outro. A razão para isso é simples: precisamos explicar para nossos amigos, filhas, assinantes assíduos, clientes, passageiros de taxi mas, principalmente, para nós mesmos por que afinal odiamos tanto. Caso o outro fosse digno de desprezo ou ainda seu mal ainda que reconhecido fosse passível de correção ou mudança, seria irracional odiarmos. Para funcionarem tais narrativas precisam, invariavelmente, caracterizar o odiado outro não apenas como culpados, perigosos e moralmente repulsivos mas, principalmente, como inferiores em condição moral. Como descreve Sternberg, "tais narrativas representam seus alvos como inimigos de Deus, vermes, estupradores, selvagens, pessoas gananciosas e sedentas pelo poder [...] a propaganda [baseada nesses narrativas] leva as pessoas a internalizar a imagem de seus alvos como tal" o que, por sua vez, reforça o sentimento sempre latente de repulsa, raiva e obsessão à que estamos sujeitos. Analiticamente, essas narrativas possuem a forma "o sujeito x ou grupo y como um todo representam o mal e não há outro jeito de solucionarmos esse problema se não o aniquilamento". Podemos assim racionalizar ações desrespeitosas, violentas ou criminosas, na medida que retiramos a responsabilização moral do outro e absolvemos nossas ações extremas como duras, porém necessárias dado o terrível estado de coisas no qual nos encontramos. O outro é menos do que um igual em respeito e consideração. 

Para além das sutilezas da teoria psicológica do ódio, duas características do estruturais do ódio parecem ser fundamentais para entendermos o ódio político. Em primeiro lugar, narrativas moralizantes de ódio são totalizantes, elas incidem sobre sujeitos ou grupos como um todo e não apenas sobre ações. Dizemos normalmente que o ódio é centrado em pessoas enquanto a indignação é centrada em ações. Ficamos indignados com algo errado ou nos ressentimos em relação à uma injustiça. Mas quando odiamos, odiamos alguém, odiamos sujeitos de intenção e não os seus atos. Em segundo lugar, narrativas de ódio são deterministas. Elas não permitem responsabilização - diferente da indignação - e oscilam entre a retribuição emocional egoísta e o aniquilamento preventivo. O outro odiado está, por exemplo, aquém do respeito entre iguais. Ressentimos as atitudes erradas de nossos iguais, de quem amamos, mas quando odiamos, a própria ideia de agência moral está ausente no outro. Ele precisa ser destruído - ou linchado à moda da elite branca de Jundiaí.

Entretanto, a pergunta ainda continua: por que eles odeiam tanto? A resposta para essa pergunta é bem mais complicada do que poderíamos esperar a primeira vista. Ao olharmos para as convicções das mulheres e homens que tem odiado nos últimos meses encontramos alguns dados difíceis de serem interpretados com exatidão. Segundo um levantamento realizado pelo grupo de pesquisadores Pablo Ortellado (USP), Esther Solano (Unifesp) e Lucia Nader (Open Society), mas infelizmente pouco comentado pela mídia (ver uma excessão aqui), algumas das convicções morais dos manifestantes anti-governo federal são bem diferentes dos princípios de suas lideranças mais expressivas, seja a dos jovens libertarianos, seja os grupos conservadores sustentados por think tanks pró-livre-mercado

Por um lado, como era natural esperar, mais de 95% dos entrevistados concordaram que paga-se muito imposto no Brasil e 92% concordaram que deveríamos diminuir os impostos no país. Por outro, surpreendentes 88% dos entrevistados afirmaram que o Estado deve fornecer saúde para todos os brasileiros, subindo para 92% quando se trata de educação. Mais de 80% afirmaram, nos dois casos, que tais serviços além de universais e públicos deveriam ser também gratuitos. Mesmo afirmações radicais para parâmetros da social-democracia européia, como a gratuidade do sistema de transporte público, foram apoiada por 21% dos entrevistados e aceita em parte (mesmo que, nesse caso, a resposta não faça sentido do ponto de vista empírico) por outros 30%. Para o desespero dos apoiadores dos irmãos Koch, mais de 73% dos entrevistados são contrários ao financiamento empresarial de campanhas políticas (e, presume-se, apoiam alguma forma de financiamento público) e o ex-senador Eduardo Suplicy (PT/SP) foi considerado uma figura pública mais honesta do que o próprio candidato conservador Aécio Neves. Com sua defesa da renda mínima incondicional de cidadania, Suplicy talvez seja o político brasileiro com a agenda política mais radical sobre justiça distributiva atualmente em atividade no Brasil. 





O radicalismo apresentado pelos entrevistados contra os impostos não permite nem mesmo a possibilidade de reestruturação do sistema tributário (50% contrários) e é, portanto, totalmente contraditório com a demanda socialista por serviços públicos de qualidade e a suposição moral de que cabe ao Estado solucionar problemas de justiça social. Muito pior, os próprios agentes políticos alvos dos protestos não apenas representam as principais forças políticas no Brasil em busca dessas demandas como foram razoavelmente bem-sucedidos em expandir a oferta de serviço público e, principalmente, incluir a base da pirâmide social brasileira no mercado e no sistema de serviços públicos. Basta reparar, além disso que esse conjunto de suposições socialistas é inimaginável em países com um sistema político mais conservador como os EUA. Mesmo entre os democratas não é seguro encontrar tanta convicção estatista assim. 

Trata-se de um contra-senso não apenas do ponto de vista político mas lógico. A conta não fecha. Sem uma estrutura de renda equitativa é simplesmente impossível suprir a demanda política dos revoltados. Algumas hipóteses forma sugeridas por cientistas políticos e encontram corroboração parcial no levantamento. A cultura brasileira seria estatista: tratar-se-ia apenas de um problema de boa administração de recursos públicos e não de equidade. Ou ainda, que o Estado em si não é um problema, mas apenas as atuais instituições políticas. Essas explicações seriam corroboradas pelo número relativamente elevado de entrevistados que concordaram que a "solução para o país" seria entregar o poder "para um político honesto" (64%) ou "para um juiz" (43%). 

São boas hipóteses de trabalho. Precisariam ser exploradas. Além disso, o levantamento é extremamente limitado e não nos permite fazer nenhum tipo de inferência explicativa mais robusta. Estamos no reino da especulação científica. O número de entrevistados é muito reduzido e, sobretudo, excessivamente homogêneo. 

Entretanto, para os efeitos da nossa discussão sobre narrativas de ódio, o levantamento revela uma importante fonte de dissonância cognitiva entre parte dos odiadores. 

Narrativas totalizantes direcionadas contra um grupo (e não contra decisões, princípios ou ideias) e que retiram do outro qualquer possibilidade de responsabilização moral (aniquilar e não exigir uma resposta), permite que possamos nos isentar de oferecer boas razões para aquilo que queremos. Nesse caso o desejo em questão parece claro mas moralmente injustificável: os agentes querem viver em uma sociedade de sobreposição de vantagens, na qual a renda é distribuída de modo extremamente injusto, e os serviços públicos, ainda que existentes e de qualidade, não se encontram ao alcance dos outros. Uma sociedade socialmente pacífica, com excelente administração pública, mas sem distribuição de renda ou desconcentração de propriedade. Uma sociedade moderna, mas com um exército de reserva de trabalhadores sem qualificação prontos a aceitarem relações de dependência. "Eu quero um sistema público eficiente para mim (ou para nós)" e esse modelo é facilmente sustentável com redução de impostos. 

O problema é que em uma democracia a cidadania exige uma forma de respeito mútuo entre iguais que nos obriga a fundamentar nossas posições. Uma exigência que não pode ser infringida sem colocar em risco o próprio fundamento das instituições políticas. Esse dever de civilidade exige que apresentemos razões para as nossas ações e reivindicações. Razões que atendam a critérios mínimos de coerência e que possam ser, pelo menos, entendidas por aqueles que não partilham necessariamente os mesmos valores ou trajetórias de vida. O desejo de manutenção de privilégios não é um argumento justificável. Uma concepção implausível de organização social não é uma boa razão.
A má notícia para os odiadores é que engajar-se no mundo político é apenas o primeiro passo. É preciso, além disso, entender o que reivindicamos e as consequências de nossas reivindicações tanto no longo-prazo quanto seu sobre os outros. Essa é uma lição, por exemplo, que a elite de São Paulo, linchadores ou não, terão que aprende. E baseado no péssimo histórico democrático do estado, talvez pela primeira vez. 

Agradeço a Renato Francisquini e a Sérgio Simoni pela discussão.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Declaração da ABCP contra o aceite do pedido de impeachment da presidente do Brasil

A Associacão Brasileira de Ciência Política (ABCP) expressou hoje, por meio de nota pública, grave preocupação em relação ao aceite do pedido de impeachment da presidente do Brasil pelo atual presidente da Camara, deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ). A nota da associação apresenta de modo coerente as razões pelas quais todos nos, pesquisadores e pesquisadoras da política no país, independentemente de eventuais filiações partidárias ou considerações a respeito do atual governo, estamos perplexos com relação ao uso oportunista, e publicamente injustificável, das nossas instituições democráticas. 

A nota pode ser lida abaixo:


A Associação Brasileira de Ciência Política vem a público expressar sua preocupação com o pedido de impeachment do mandato exercido pela presidente Dilma Rousseff, aceito ontem pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. A ABCP conclama os atores políticos do país a agirem com responsabilidade na defesa da estabilidade das instituições democráticas.
Embora o instrumento jurídico-político do impeachment faça parte da institucionalidade democrática existente no Brasil, causa perplexidade e preocupação a forma como ele foi aceito pelo presidente da Câmara dos Deputados. Acuado por gravíssimas denúncias de corrupção e ocultação de recursos no exterior, o deputado Cunha utilizou-se do instrumento, talvez o mais importante na defesa da ordem democrática, como arma na tentativa de resguardar seus interesses privados. Por conta disso, a ABCP expressa a sua perplexidade diante da utilização ilegítima e sem fundamentação jurídica do instrumento do impeachment por uma das mais altas autoridades da república.
Independentemente das opiniões favoráveis ou contrárias ao governo de Dilma Rousseff, a ABCP chama a atenção da população brasileira para os riscos iminentes diante das grandes conquistas da nossa democracia desde 1988. Temos no Brasil instituições republicanas fortes, um judiciário independente e uma cidadania ativa.  Acreditamos que o grave momento por que passa a democracia no país tem de ser resolvido no sentido do reforço da legalidade, da impessoalidade, do interesse público e do equilíbrio entre os poderes que têm inspirado nossa construção democrática desde 1988.


segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Arretche: desigualdade e superposição de vantagens no Brasil

Marta Arretche (USP), cientista político e coordenadora do Centro de Estudos sobre a Metrópole (CEM), foi entrevistada pelo jornal El País a respeito dos impactos da retração econômica no processo histórico de desigualdade social no Brasil. Segundo a pesquisadora, nada nos garante que a queda do PIB terá como consequência necessária o aumento radical da diferença entre a renda do trabalho não qualificado e o restante da sociedade. Se por um lado o desemprego prejudica o trabalhador ou trabalhadora com baixa escolaridade, por outro, o país conta hoje, segundo Arretche, com uma rede de proteção social até então inédita em nossa história política. Além disso, duas das principais ferramentas de combate à desigualdade econômica nas últimas décadas - aumento real do salário mínimo e os programas de combate a pobreza extrema - permanecem, até o momento, em funcionamento. Em resumo: ainda que sempre tentadoras, inferências fáceis sobre o futuro precisam ser temperadas com doses fartas de metodologia empírica e rigor analítico antes de serem vendidas como conhecimento.



Fortaleza/CE (autor desconhecido)


Contudo, alerta Arretche, não devemos subestimar o papel da "superposição de vantagens" - quando os indivíduos com maior renda e riqueza possuem também a melhor escolaridade e acesso privilegiado aos serviços públicos - na organização da política democrática no país. Isto é, pobreza no Brasil não é apenas falta de renda mas também a falta de acesso à infraestrutura básica de serviços públicos enquanto riqueza, por sua vez, significa além de dinheiro, acesso privilegiado a esses mesmos serviços. Desigualdade econômica e exclusão social andam lado à lado. O fato de sermos uma das democracias com maior concentração de renda do mundo faz com que, de um lado, o pagamento por serviços básicos seja um desafio intransponível para um número enorme de cidadãos e, de outro, faz com que os cidadãos privilegiados pela superposição de vantagens resistam ao custeio do processo de inclusão por meio do Estado, uma vez que já se encontram "incluídos" nos benefícios da cooperação social. 

Marta Arretche organizou recentemente o livro Trajetórias da Desigualdade (UNESP, 2015) (veja aqui uma entrevista com a autora), no qual diferentes dimensões da desigualdade no Brasil são sistematizadas e apresentadas por diferentes grupos de especialistas. A obra é considerada, com toda justiça, uma das publicações de ciência social mais importantes das últimas décadas.

[...] 

P. Por que o acesso aos serviços é importante para a redução da desigualdade?
R. Um dos componentes centrais do bem-estar dos indivíduos é ter acesso a serviços básicos. Lamentavelmente, o país na década de 80, e em particular no início do processo de redemocratização, tinha indicadores sociais muito ruins. Os índices de cobertura de serviços de saúde, educação, saneamento básico, água, energia elétrica, eram piores do que nos outros países da América Latina menos ricos do que o Brasil em termos de PIB per capta e renda per capta. Isso significa que a tarefa para as gerações que governaram o país sob o regime democrático era muito grande porque era um país caracterizado não apenas por uma intensa desigualdade entre indivíduos, mas também por uma elevada desigualdade entre regiões e por uma superposição de vantagens entre indivíduos. Em 1980, 80% dos 5% mais pobres não tinham nenhum desses serviços. Nós chamamos de superposição de vantagens, ou seja, aquele que tem melhor renda, também tem a melhor escolaridade, melhor acesso a serviços e, portanto, tem uma cesta de condições de vida bastante completa do ponto de vista das condições básicas de existência. Ao passo que os indivíduos nos estratos inferiores de renda também não tinham acesso a água, esgoto, energia. Eles tinham uma superexposição de desvantagens. O que aconteceu no processo de democratização brasileiro, que é parte do problema que estamos vivendo hoje, é um progressivo processo de inclusão dos muito pobres a esses serviços muito essenciais e muito básicos.
P. E por que isso é parte do problema vivido hoje?
R. Porque isso tem um custo. Os 20% mais pobres têm uma renda muito baixa e grande parte do que eles recebem tem que ser subsidiado por diversos mecanismos, seja pelo tesouro, seja por tarifas cruzadas nas diferentes políticas... Isso tem um custo fiscal. Nada disso sai de graça, é financiado. E a população com incapacidade de pagamentos de serviços básicos é muito numerosa no Brasil, o que é outra forma de dizer que a concentração da renda é muito alta. Alguém tem que pagar por isso. Se não é possível aumentar impostos, porque há revoltas sistemáticas contra a taxação no Brasil, o resultado é um déficit fiscal. Se você aumenta o acesso a serviços para os muitos pobres, e os muito pobres são um contingente expressivo da população, e não é possível aumentar impostos porque há uma barreira para isso e as outras soluções possíveis, que seriam o endividamento, a inflação ou os recursos do petróleo, estão fechadas, o déficit fiscal será uma consequência.

sábado, 28 de novembro de 2015

Dívida pública: técnica ou política?

De modo otimista, poderíamos esperar que um dos lados positivos da atual crise fiscal brasileira seria o estimulo na nossa esfera pública de uma discussão mais inteligente sobre os futuros da organização econômica do país. Paradoxalmente, contudo, qualquer pessoa que já tenha tentado enveredar pelo debate rapidamente descobrirá que a imagem da crise reapresentada diariamente nos meios de comunicação - com algumas excessões - é, ao mesmo tempo, invariável e inquestionável: estaríamos pagando o preço dos "erros" da política econômica do primeiro governo Dilma, voltada para o estímulo setorial, concessão de crédito barato e tentativa de diminuição da taxa de juros. Em um interessante artigo para a plataforma Outras Palavras, o sociólogo Felipe Calabrez (USP/FGV) analisa essa imagem recebida da crise, chamando a atenção para o problema pouco reconhecido (especialmente pelos economistas) das narrativas moralizantes presentes em nosso vocabulário econômico.

A imagem, ou "mito", das decisões econômicas equivocadas seria problemática segundo o pesquisador por duas razões. Em primeiro lugar, porque ela tende a misturar economia e política de modo ingênuo, aceitando como postulado que decisões macroeconômicas não acarretam conflitos de interesses, por vezes insolúveis, e que diferentes interpretações econômicas possuem vínculos sociais determinados com esses interesses. Tratar-se-ia de um erro ou de uma incompetência administrativa do governo ao invés de uma tentativa deliberada (acertada ou não, pode-se discutir) de solucionar um dos problemas macroeconômicos mais urgentes do país. Além disso, e talvez mais importante para o debate político atual, a visão recebida parece assumir que, em geral, decisões de política econômica são de natureza técnica e que, portanto, dependem de conhecimento acadêmico  ou científico muito mais do que da difícil tarefa de priorização de valores exteriores ao funcionamento da economia. Tal como, por exemplo, a aparente necessidade de mantermos uma das taxas de juros mais elevadas do mundo - entendida pela visão recebida como a consequência, e não a causa, da atual crise fiscal.

Não estou afirmando [...] que não se possa imputar erros às decisões de política econômica tomadas por Dilma em seu primeiro mandato. Parece plausível concluir que houve um conjunto de equívocos, de medidas mal calibradas e que não surtiram os efeitos calculados. [N]o entanto, que o que está verdadeiramente em jogo não diz respeito a “equívocos de política econômica”, ainda que eles possam ter ocorrido. O ponto que levanto é o seguinte: Acertadas ou equivocadas – de um ponto de vista de sua adequação aos fins almejados – e bem ou mal sucedidas – do ponto de vista de seus resultados observados ex-post – as medidas do primeiro governo Dilma desencadearam uma forte reação por parte de um grupo de economistas de oposição. [...] De acordo com essa visão, heterodoxia e desenvolvimentismo seriam ideologias, algo que encobre a visão correta da realidade. Seriam, portanto, equívocos.[...]

O debate sobre as “pedaladas fiscais” [por exemplo] elege como problema de primeira gravidade a “operação de crédito”, isto é, o repasse da CEF aos beneficiários antes do recebimento do dinheiro pelo Tesouro. É este o crime que o Tribunal de Contas da União (TCU) imputa ao governo. A quem interessa enquadrar o governo no crime de responsabilidade fiscal? Dentro da hierarquia de valores contida nesse debate, um eventual “não pagamento” do Bolsa Família a seus beneficiários tem peso zero. Nesse debate, o mais importante de tudo é o resultado primário das contas do governo, para onde os analistas de risco e gestores do dinheiro graúdo olham incessantemente. E é a narrativa destes últimos que encontra acolhida em todos os grandes jornais.
O exemplo acima, embora controverso, carrega aquilo que seria comum nas discussões mais gerais sobre política econômica. Por trás das visões sobre política “errada” e “correta”, há implícita uma definição de prioridades e valores. Isto fica claro mais por conta do que os discursos omitem do que daquilo que revelam. Os “economistas de mercado”, sempre chamados a dar seus pareceres em jornais e telejornais, falam sempre em excesso de gastos, mas costumam omitir a chamada componente financeira desses gastos – isto é, a conta de juros. Esta, quando mencionada, é sempre apresentada como consequência do excesso de gastos, nunca como parte dele. O próprio orçamento – um assunto eminentemente político – aparece nos discursos como uma questão técnica e de “responsabilidade”. Por trás de uma discussão fiscalista está, sem dúvida, uma questão de projeto de país e de prioridades a serem atendidas. E isso passa também pela questão do remanejamento do orçamento público.

Habermas sobre os ataques em Paris

Entrevistado pelo jornal francês Le Monde, Jürgen Habermas afirmou que a atual tentativa de mudança constitucional na França, na qual o governo socialista de Hollande pretende prorrogar o Estado de emergência no país por três meses, devido aos atentados da última sexta-feira 13, poderia deteriorar a vida política francesa tanto quanto o Patriotic Act o teria feito nos EUA. O Patriotic Act  representou não apenas uma das principais ameaças às liberdades civis da história constitucional norte-americana como, segundo Habermas, teria aberto a possibilidade para figuras "neo-nacionalistas", como os pré-candidatos republicanos Donald Trump e Ted Cruz, de chegarem ao poder. Habermas também discute a responsabilidade histórica européia em relação ao colonialismo no Oriente Médio. A entrevista original em francês pode ser encontrada aqui. Ver abaixo a versão em inglês publicada pela Social Europe:


The Paris Attack and Its Aftermath
by Jürgen Habermas


President Hollande spoke of the need for constitutional changes to amend the processes of the state of emergency (which go back as far as the Algerian war). It’s a question of defining a “state of war” suited to a situation that is neither a “state of siege” (in order to overcome a rebellion) nor Article 16 of the Constitution handing full powers to the President of the Republic – employed once by General de Gaulle at the time of the ‘generals’ putsch’ in April 1961. What’s your take on this discussion? More generally, do you think an amendment to the Constitution is a proper response to the attacks of November 13?
Basically, it seems to me to be sensible to adapt the two relevant paragraphs on emergency in the French Constitution to today’s situation. The fact that this is now on the agenda is clearly a consequence of the fact that the President called a state of emergency after the shocking events and wants to extend it for three months. I cannot judge the reasons why this policy is necessary; I’m no security expert. But, seen from afar, it looks like a symbolic act on the part of the government to react to the mood of the country – and probably in an appropriate manner. In Germany this warlike rhetoric of the French President – driven by domestic politics – is met with significant reservations.
President Hollande has also decided to increase the level of French intervention in Syria, notably by bombing Raqqa, the “capital” of Daesh (ISIS). What do you think of such interventionism in general? 
This is not a new political decision but a stepping up of the French air force’s operations that are long under way. Of course, experts agree that such a remarkable phenomenon as Daesh – a mixture of a “Caliphate” within undefined territorial borders and of globally deployed killer squads – cannot simply be defeated from the air. But an intervention by American and European ground troops would not just be unrealistic but, above all, unwise. It’s of no help at all bypassing local political forces. Obama has learned the lesson of the failed interventions of his predecessor and, at the last G20 summit in Turkey, made an interesting remark. He pointed to the fact that foreign troops can no longer guarantee the results of their military successes post-withdrawal. What’s more, you can’t cut the ground from under ISIS’s feet through military means alone. The experts agree on that too.
However much we look on these barbarians as enemies and must oppose them ruthlessly, we simply cannot be allowed to deceive ourselves over the complex reasons for this barbarism if we want to succeed in the long term. Given the state of mind of a deeply wounded French nation, a Europe in turmoil and a highly insecure western civilisation, this may not be the right time to recall the context which lies behind this explosive and, for now, uncontrolled potential for conflict in the Middle east – from Afghanistan and Iran to Saudi Arabia, Egypt and the Sudan.
Let’s just cast a glance back at the era since the Suez crisis of 1956. A policy based almost exclusively on geo-political and economic interests of the USA, Europe and Russia has run up against an artificial and tattered legacy of the colonial period in this fragile region of the world; these powers have exploited local conflicts for their own ends and contributed nothing towards stabilising the situation. It’s common knowledge that the conflicts between Sunnis and Shias, the main source of energy for ISIS’s fundamentalist drive, erupted only as a consequence of George W. Bush’s illegal (in international law) intervention. Barriers in the faltering process of modernisation in these societies may also be rooted in distinctive aspects of a proud Arab culture. But the West’s policy is far from innocent when it comes to the lack of any future prospects and hopelessness felt by young generations seeking opportunities to build a better life on their own and be recognised for doing so. And, when all political efforts fail, become radicalised in order to regain their self-respect via sociopathic routes.
A similarly desperate psycho-dynamic of lack of self-respect seems to make isolated petty criminals, who come from our European migrant milieus, into the perverse heroes of remote-controlled killer commandos. Early journalistic research into the background and CVs of the November 13 terrorists would suggest this is the case. Along with the causal chain leading to Syria there’s another one drawing our attention to the failed efforts to integrate in the social cauldrons of our big cities.
At the time of the 9/11 attacks, a certain number of intellectuals around the world, including Jacques Derrida and yourself, worried at the removal of civil liberties threatened by the pressures of the “war on terror” and recourse to ideas such as the “clash of civilisations” or “hoodlum states”. This diagnosis has been largely confirmed by the use of torture, NSA controls, arbitrary detentions in Guantanamo etc. Is a fight against terrorism that keeps the democratic public space intact possible or even thinkable in your view? And in what conditions?
Looking back at 9/11 we, like many of our American friends, must note that Bush’s, Cheney’s and Rumsfeld’s “War on Terror” has harmed the political and mental state of American society. The Patriot Act, swiftly enacted then by Congress and still in force, undermines basic civil rights. The same holds for the fatal extension of the concept of  “enemy combatant” that has legitimised Guantanamo and other crimes and has only been withdrawn from circulation by the Obama government. Without this unwise reaction to what had been until then an unimaginable attack on the World Trade Center, the spreading of the kind of mentality that today signs up in agreement with such an unspeakable character as Donald Trump, the Republican presidential contender, could scarcely be imagined.
That’s no reply to your question. But can we not – like the Norwegians in 2011 after the horrific attack on the island of Utoya – resist our first reflex of turning back on ourselves in face of the incomprehensible alien and of resorting to aggression against the “internal enemies” (Carl Schmitt)? I’m confident that the French nation will set an example as it did after the attack on Charlie Hebdo. There’s no need here for repulsing a fictive danger such as the looming “subjection” to an alien culture. The danger is much more concrete. Civil society must beware of sacrificing individual liberty, tolerance towards the diversity of life-styles and readiness to take on the perspective of the other – all these democratic virtues of an open society – on the altar of an imaginary stage of security that we cannot reach anyway.
Given the fortified Front National that’s easier said than done. But there are good reasons over and above exhortations. The most important is staring us in the face: prejudice, mistrust and seclusion of Islam, fear of it and a preventive fight against it, are also down to sheer projection. For jihadi fundamentalism expresses itself in religious codes but it is no religion. Under other circumstances it could use any other religious language, indeed any other ideology to hand, that promises redemptive justice. The world’s great religions have roots going back a long way. On the other hand, jihadism is a thoroughly modern form of reaction to uprooted ways of life. Of course, a prophylactic pointer to the background of failed social integration or faltering social modernisation does not absolve the perpetrators of their personal guilt.
Germany’s attitude towards the inflow of refugees came as a positive surprise despite a recent rowing back. Do you think that the terrorist wave threatens to change this state of mind (isn’t it already being said that quite a few Islamists tried to sneak in via the crowds of refugees)?
I hope not. We’re all sitting in the same boat. Both, the terror and the refugee crisis, are – perhaps for the last time – dramatic challenges for a much closer sense of co-operation and solidarity than anything European nations, even those tied up to one another in the currency union, have so far managed to achieve.
This interview was conducted by Nicolas Weill and was first published by Le Monde in French. It was translated and adapted for Social Europe with permission of the interviewee.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Trump: Como destruir um país em 146 caracteres

Por Lucas Petroni

O líder nas pesquisas à indicação republicana para a corrida presidencial nos EUA, o empresário Donald Trump, descreveu a si mesmo como um "Ernest Hemingway de 140 caracteres". Ainda que a comparação seja injusta com o autor de Paris é Uma Festa, ela faz sentido em seu estilo peculiar de fazer campanha: uma mistura estranha, as vezes engraçada, as vezes assustadora, de narcisismo e maestria no uso da mídia para seus propósitos. Nos últimos seis meses, Trump tem utilizado sua conta pessoal do Twitter para dominar o debate político do país. Ele é o grande representante da política de 146 caracteres. 

Para dar uma ideia das razões pelas quais o Twitter de Trump é tão controverso, segue uma lista de algumas de suas declarações "extravagantes", a maioria delas escritas, repercutidas e, sobretudo, debatidas através das mídias sociais norte-americanas. 


(Credit: AP/Chris Pizzello)

Até agora Trump já afirmou que:

- imigrantes mexicanos são "criminosos, traficantes, estupradores, etc." (link);

- é preciso construir uma muralha para separar os EUA do México; e que o México deveria pagar por isso (link);

- praticamente tudo a respeito da China (link);

- é preciso bombardear "os campos de petróleo do ISIS", mas que não se deve falar isso publicamente pois eles poderiam antecipar essa estratégia (link);

- que ele irá aumentar os impostos sobre os ricos que não contribuem para a grandeza da America [para completo desespero dos Republicanos] (link);

- que o governo dos EUA deveria colocar os refugiados sírios em campos de concentração no país ou manda-los de volta para a Síria, ou as duas coisas (link);

- que o governo dos EUA deveria fechar as mesquitas no país (link);

- que muçulmanos em geral deveriam ser obrigados a se registrar em uma "lista" (link);

- que a Hilary Clinton usa peruca (link);

- que ele viu com os próprios olhos "pessoas em Nova Jersey comemorando a queda do World Trade Center" (link);

Certamente a política de Trump é risível - pelo menos para aqueles que a vêem de fora. Na maior parte das vezes é possível perceber que ele não consegue sustentar mais do que dois minutos (ou 146 caracteres) de debate sobre um assunto sem apelar para as suas frases de efeito, sendo a principal delas seu slogan de campanha "a América será grande de novo" (America will be great again). Isso não significa necessariamente que o candidato Trump se saia mal em frente às câmaras. Ao contrário. Ao lado de seus principais oponentes republicanos, como Carson e Rubio, Trump se destaca. O motivo disso não é difícil de ser entendido. Tal como muito do que estamos acostumados a assistir sob o rótulo de análises ou painéis de políticas na TV à cabo no Brasil, a coisa toda  parece política a primeira vista, mas na verdade não passa de show business.  E quanto a isso Trump é um gênio.

O establishment cultural nos EUA, incluindo até mesmo a ala conservadora da mídia (mas não a ultraconservadora Fox News, é preciso ressaltar), tende a desprezar a candidatura de Trump. Ora visto como um  simples problema de ego, ora como um efeito perverso da fusão entre política de massa e mídia, a candidatura de Trump é catastrófica para quase todo mundo - menos é claro para os seus eleitores. Para alguns ele ocuparia o clássico papel do demagogo (ver aqui um excelente ensaio do filósofo Jason Stanley sobre o assunto), para outros, seria apenas mais uma consequência da precariedade cultural do eleitor médio norte-americano. Uma ala do partido Republicano chegou ao ponto de se comprometer publicamente (desesperadamente) a tentar acabar com a sua candidatura temendo os efeitos adversos nas eleições do ano que vem. Todavia, não se trata de uma tarefa fácil derrubar o empresário: além das pesquisas de intenção de voto Trump controla também sua própria fonte de financiamento ficando imune à influência das fontes de recursos republicanas tradicionais como, por exemplo, os irmãos Koch

Cada uma dessas reações tem sua parcela de verdade. Contudo, duas consequências mais gerais parecem ter sido despertadas pelo fenômeno Trump. Consequências essas relacionadas não à pessoa Trump mas àquilo que podemos chamar - apenas porque não temos um nome melhor - de trumpismo na cultura política dos EUA. 

A primeira delas diz respeito ao papel das mídias sociais e das celebridades de modo geral na política. Quando começaram a ser mais disseminadas nos EUA, existia uma grande expectativa em relação ao seu potencial democrático para o debate político. Imaginava-se, algo ingenuamente talvez, que elas representavam uma nova forma de esfera pública ou que poderiam trazer o eleitorado para dentro do debate. Segundo esse raciocínio, a eleição de Obama teria sido um exemplo extremamente bem sucedido da diferença entre mobilização on-line versus mobilização partidária convencional. Com Trump, Tea Party e sua fiel horda de "revoltados on-line" podemos concluir agora que no cenário mais otimista a introdução de novos meios de comunicação não é nem intrinsecamente melhor nem intrinsicamente pior para a qualidade geral do debate. Esfera pública e inclusão estão lá, é verdade, mas não acredito que tenha sido esse tipo de participação que os mais otimistas tinham em mente. Essa é uma conclusão também válida para o Brasil. A quantidade de ódio racial e político nas nossas mídias sociais veio para ficar. 

Para colocar a primeira consequência em apenas uma frase: se a Islândia foi capaz de usar o facebook para reformar a sua constituição, esse fato diz muito mais sobre a Islândia do que sobre o facebook.

A segunda novidade, talvez mais interessante do ponto de vista da ciência política, é a aparente contradição entre a radicalização conservadora do partido republicano, de um lado, e a precarização da classe trabalhadora tradicional nos EUA, de outro. Os estados do sul e do meio-oeste dependem cada vez mais de ajuda federal para manter seus programas sociais e lutar contra o desemprego. O Kentucky, para ficarmos com um ótimo exemplo, recentemente elegeu um governador republicano famoso pelo seu fervor contra o Obamacare sendo, ao mesmo tempo, uma das regiões do país mais dependentes de programas de saúde sustentados pelo Estado. O azul (democrata) está desaparecendo no interior do país justamente nos estados mais pobres, precarizados e dependente da ajuda federal e, por conta disso, teoricamente mais suscetíveis à agenda política democrata, favorável por sua vez a expansão do regime de bem-estar no país (ver o mapa abaixo). 









Não estaríamos diante de um paradoxo? Afinal, se o eleitor é racional não deveríamos esperar nesses casos o voto em políticos contrários à redistribuição. A hipótese da loucura não é impossível. Talvez esses eleitores não entendam exatamente o funcionamento da economia ou eles próprios não queiram, contra seus próprios interesses materiais imediatos, identificarem-se como "perdedores" do jogo econômico (para usarmos uma metáfora partilhada tanto pela América profunda como pelos traders do mercado financeiro). O "trumpismo" nos EUA seria explicado, segundo essa hipótese, por um eleitorado composto por trabalhadores brancos não-qualificados cada vez mais "assustados e ressentidos" com a perda de seu protagonismo econômico e político no país e que estariam dispostos a votar contra seus próprios interesses econômicos em nome dos valores norte-americanos. Trump seria tão lunático quanto seu próprio eleitorado. 

Como disse, é possível. Mas um outra hipótese um pouco mais complexa que a primeira tem sido apresentada com certo sucesso. A explicação alternativa procura solucionar o mistério a partir da intersecção de dois mecanismos: (i) o empobrecimento relativo do trabalhador médio e (ii) o funcionamento do sistema eleitoral do país. Ainda que classe trabalhadora branca esteja empobrecida, ela ainda é relativamente menos empobrecida que a classe trabalhadora não-branca. A verdade é que os eleitores dependentes de proteção social nos Estados controlados pelos republicanos simplesmente não estão votando

Segundo uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center em 2014, é possível notar uma diferença importante nesses estados entre eleitores e não-eleitores em potencial em relação as opiniões sobre o papel do Estado na economia. Em relação à condição financeira pessoal, por exemplo, entre aqueles entrevistados que afirmaram que tinham intenção de votar nas próximas eleições apenas 19% possuía renda inferior à 30 mil dólares anuais, contra 46% daqueles que afirmaram não ter intenção de votar nas próximas eleições. Apenas 28% de potenciais eleitores afirmaram não tinham uma poupança para a aposentadoria, contra impressionantes 63% dos não-eleitores em potencial. Finalmente, 60% dos futuros eleitores concordaram com a afirmação "o governo é sempre mais ineficiente e incompetente", contra 54% dos não-eleitores.

Ou seja, talvez quem esteja votando nesses estados sejam, de fato, menos desfavorecidos do que aqueles que não votam, e o voto ultra-conservador poderia ser  explicado como uma mistura de proteção contra redistribuição, de um lado, e punição para aqueles que se encontram imediatamente na classe abaixo e que, por sua vez, não costumam participar das eleições nos EUA. Como afirma o jornalista Alec MacGillis em uma excelente reportagem sobre o voto conservador nos EUA, "eleitores [em estados economicamente prejudicados pela recessão] estão optando conscientemente contra a agenda econômica democrata, entendida como ruim para eles e boa [apenas] para as outras pessoas - especificamente para aqueles que recebem dinheiro público não-merecido e que vivem por perto". 

A principal razão pela qual a participação eleitoral entre os mais pobres nos EUA é tão baixa pode ser explicada em parte pelo modo como o sistema eleitoral distribui os custos da participação: nos EUA, ao contrário do Brasil por exemplo, o alistamento eleitoral não é compulsório e cabe a cada eleitor não apenas ir votar no dia do pleito (que nem sempre é no domingo) como se registrar como eleitor antes das eleições começarem. O custo informacional e financeiro, especialmente no casos de trabalhadores não-qualificados que precisam deixar de trabalhar para votar, aliados a notória dificuldade do sistema eleitoral indireto e a dificuldade de parte do eleitorado com a língua inglesa, acabam distribuindo de modo assimétrico o ônus da participação. E, o que é mais importante no caso que estamos tratando aqui, o tornam mais oneroso especialmente nos nos estados mais pobres. 

Talvez seja injusto culpar apenas Trump pelo aumento do chauvinismo nos EUA. Talvez o próprio sistema institucional esteja favorecendo uma espécie de contra-reforma política vis à vis a crescente mudança da composição social no país. Se o país está se tornando, em termos sociológicos, um país com maior protagonismo das mulheres, de jovens negros e de falantes de espanhol, politicamente o sistema partidário continua mais responsivo ao eleitorado de trabalhadores brancos. Mesmo que os últimos estejam se tornando cada vez mais ressentidos e pobres -  e não apenas em termos materiais.  


Agradeço à Trisha Olson pela discussão e pela ajuda com o sistema eleitoral dos EUA.