segunda-feira, 31 de março de 2014

Os "cadernos pretos" de Heidegger

Lançados como parte de sua obra completa, os "cadernos pretos" do filósofo alemão Martin Heidegger iniciaram um debate público intercontinental entre filósofos, historiadores e cientistas políticos a cerca do papel do antissemitismo no pensamento heideggeriano e das relações entre filosofia e política. Postergado até o último volume de suas obras completas a pedido do próprio Heidegger, os cadernos trazem à tona os diários e rascunhos do filósofo entre 1931 e 1941 - momento no qual Heidegger não apenas aderiu ao partido nazista alemão como assumiu por um ano o reitorado da Universidade de Freiburg. A polêmica acerca dos cadernos trata da tese forte - defendida por alguns de seus críticos - segundo a qual mais do que um simples "erro político" ou "falta de fibra moral", as premissas políticas do nazismo são parte constitutiva da obra filosófica heideggeriana. Sua crítica ontológica ao mundo moderno não estaria completa sem a recusa da "desmundaneidade" (supostamente) inerente ao judaísmo (agradeço ao Victor Pereira pela indicação).



Heidegger março de 59 (René Spitz)

Veja a entrevista do filósofo francês Emmanuel Faye e o artigo de Philip Oltermann em defesa da tese. Contra, ver os textos de Domenico Losurdo no Guardian e do filósofo Jonathan Reé. Como balanço da discussão, ver o excelente artigo de Richard Brody para o blog da The New Yorker. 


Contra:





sexta-feira, 28 de março de 2014

Entrevista: Thomas Scanlon

Por ocasião do evento "O neocontratualismo em questão" organizado pelo departamento de filosofia da Unisinos (RS) (ver a chamada do evento no nosso blog aqui), o professor Thomas Scanlon (Harvard) concedeu uma entrevista à revista do Instituto Humanitas da Unisinos na qual comenta as principais características de sua teoria moral "contratualista" e o papel da responsabilidade individual nessa perspectiva. Além da entrevista de Scanlon, a equipe da revista entrevistou também os profesores Denis Coitinho (Unisinos), Delamar Dutra (UFSC), Carlos Ferraz (UFPEL), Densilson Werle (UFSC), dentre outros. Veja abaixo as entrevistas na íntegra (agradeço ao professor Denis Coitinho pela indicação).

- Coitinho: "Percurso histórico e características do contratualismo e do neocontratualismo"

- Werle: "O mérito do neocontratualismo nas sociedades democráticas"

[...]
Thomas Scanlon: A ideia central da teoria moral que eu chamo de contratualismo é que a “correção” ou “incorreção” de uma ação é determinada pelo equilíbrio das razões que os indivíduos em diferentes posições têm para favorecer ou rejeitar uma norma que permitiria tal ação. Assim, por exemplo, se é permitido quebrar um contrato sob determinadas condições, isso depende de quais são as razões daqueles que se encontram na posição de contratados para querer uma norma que não exigiria o cumprimento sob tais condições, e quais as razões daqueles que estão na posição de contratantes para rejeitar uma norma que seja leniente dessa forma. Seria errado quebrar esse contrato se fosse razoável para alguém na posição de contratado rejeitar uma norma permitindo isso, mesmo tendo em conta as razões do outro lado.


Essa explicação da moral está em contraste com visões "intuicionistas", que sustentam que há apenas algumas verdades sobre o certo e o errado, as quais somos capazes de discernir se pensarmos sobre o assunto com cuidado, mesmo que não haja nenhum relato sistemático do que esse pensamento envolve. Também está em contraste com visões "consequencialistas", que sustentam que há uma explicação mais sistemática, que consiste em decidir qual ação, ou que norma, levaria a melhores consequências em geral. O que é especial sobre o contratualismo é a sua forma "individualista" da justificação: a maneira que ele considera o certo e o errado depende do equilíbrio entre as reivindicações dos indivíduos.


O que devemos uns aos outros?

Por: Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução: Moisés Sbardelotto

IHU On-Line - O que é responsabilidade substantiva e responsabilidade por imputabilidade?

Thomas Scanlon – Condições de responsabilidade são as condições necessárias para que a ação ou a atitude de um agente tenha certas consequências morais. Um tipo de consequência é tornar apropriadas certas reações morais positivas ou negativas à pessoa, tais como culpa, ressentimento, louvor ou gratidão. Outro tipo de consequência moral é uma mudança nas obrigações da pessoa para com os outros, ou dos outros para com ela. Por exemplo, se eu sou responsável por prejudicar outra pessoa, então posso ter a obrigação de compensar essa mesma pessoa. Se eu sou responsável por uma perda para mim mesmo, pode significar que tenho menos direito de reivindicação contra os outros para que me ajudem a lidar com isso. Chamarei as questões de responsabilidade desses dois tipos de responsabilidade moral e responsabilidade substantiva, respectivamente.

Em cada caso, identificar quais são as condições de responsabilidade é uma questão moral de primeira ordem sobre o que é necessário para que as consequências morais relevantes aconteçam. A resposta a essa pergunta dependerá, portanto, exatamente de quais consequências serão tomadas. No caso que acabei de chamar de responsabilidade moral, a consequência é tomar certas "atitudes reativas" em direção ao agente, incluindo atitudes como ressentimento e indignação, famosamente enfatizadas por P. F. Strawson . Mas também, creio eu, incluem certas mudanças na compreensão da pessoa de sua relação com o agente e em suas intenções sobre como agir em relação a ele, que incluem a perda de confiança, da vontade de ajudar ou de tornar-se amigo da pessoa . 

Acredito que essas atitudes reativas podem ser tomadas de modo apropriado simplesmente pelo fato de que o agente tem certas atitudes em relação aos outros, como a falta de preocupação adequada com os interesses deles. A questão da responsabilidade moral de um agente por uma ação (a questão de saber se essa ação gera culpa ou outras reações apropriadas), portanto, resume-se a saber se esta ação mostra o agente tendo tais atitudes defeituosas. Isso poderia ser posto como a questão de saber se tais atitudes são atribuíveis ao agente com base nessa ação, e é por isso que, em What We Owe to Each Other, eu usei o termo "responsabilidade como imputabilidade" [“responsibility as attributability”] para me referir a essa forma de responsabilidade. Apesar de ter mencionado apenas atitudes reativas "negativas", como culpa e ressentimento, acredito que as mesmas condições de responsabilidade moral se aplicam no caso de reações positivas, como a gratidão. A gratidão é apropriada apenas no caso de a ação do agente mostrar um nível particularmente elevado de preocupação para com a outra pessoa e um desejo de beneficiá-la.

Esta visão da responsabilidade leva-me a dizer — o que pode parecer surpreendente — que na maioria dos casos a coerção não enfraquece a responsabilidade moral. A atendente do banco que diante de uma ameaça crível entrega o dinheiro da gaveta é responsável por fazê-lo, mas ela pode merecer a gratidão ou mesmo uma recomendação especial por lidar com a situação com tanta calma. Isto se deve ao fato de que as atitudes que são atribuíveis a ela, com base em sua ação, podem ser louváveis. A coerção revela que a atendente não deve ser censurada, pois tal ação alterou os motivos pelos quais ela entregaria o dinheiro. Isto, no entanto, não faz desta uma ação pela qual ela não seja responsável. Ela ainda é devidamente elogiada ou culpada — no caso, elogiada — pelas atitudes atribuídas a sua base de ação.

Também é verdade, no entanto, que a entrega do dinheiro ao ladrão pela atendente do banco não tem a consequência moral de fazer o dinheiro ser dele. Se tivesse esta consequência, seria uma questão de responsabilidade substantiva. Tal consequência não existe, pois acontece de forma não livre, isto é, sob coerção. Assim, poderíamos dizer que a falta de liberdade do tipo envolvido na coerção enfraquece a responsabilidade substantiva, mas não a responsabilidade moral (responsabilidade como imputabilidade). Isso é correto no caso em questão, mas seria um erro generalizar e dizer que os tipos de consequências morais envolvidos na responsabilidade substantiva — transferência de propriedade, consentimento, renúncia a um direito, etc. — fluem somente a partir de ações que são voluntárias ou expressam a livre escolha do agente. O que eu faço, ou deixo de fazer, pode ter consequências desse tipo, mesmo quando isso não reflete qualquer escolha consciente de minha parte.

Se eu comprar entradas de teatro pela internet — e uma condição para a venda é que eu tenho de buscá-las ao menos 30 minutos antes da hora do início do espetáculo — então eu perco qualquer pretensão de possuir as entradas se eu não conseguir fazer isso, mesmo que o meu fracasso seja resultado de uma pura intenção ausente, ao invés de qualquer escolha ou decisão, e mesmo que eu não tenha percebido essa condição quando cliquei em "comprar entradas". Para que a minha falha ao pegar as entradas tenha essa consequência é suficiente que o teatro, ou a agência de reservas, tenha feito o máximo que podia ser obrigado a fazer para me deixar ciente dessa condição. Não importa se eu, de fato, notei essa condição e "livremente escolhi" ignorá-la. Se eu notei ou não, o resultado é que eu sou "responsável" e não posso me queixar.

terça-feira, 25 de março de 2014

Recursos Reflexivos e Imaginação Radical

Gustavo Pereira, professor de filosofia da Universidad de La Republica (Uruguai) e atualmente professor convidado do departamento de ciência política da USP, irá ministrar a palestra "Recursos reflexivos e imaginación radical" na próxima quinta-feira (27) às 17h30. Como parte dos Seminários de Ciência Política da USP o evento é aberto a todos. Pereira é autor do livro Elements of a Critical Theory of Justice e editor do livro Perspectivas Críticas de Justicia Social




segunda-feira, 24 de março de 2014

Dossiê 50 Anos do Golpe

O jornal Folha de S. Paulo publicou uma série de reportagens especiais sobre os 50 anos do golpe militar no Brasil, incluindo o dossiê "Tudo Sobre A Ditadura Militar". No dossiê, 12 entrevistados (dentre os quais, FHC, Francisco de Oliveira, Plínio de Arruda e Delfim Netto) respondem à pergunta: "Por que Jango foi deposto em 64?". Um impactante infográfico lista os nomes e as fotos dos 216 mortos e 140 desaparecidos oficialmente reconhecidos pelo Estado. 


Um dos autores do livro "A Ditadura que Mudou o País", o sociólogo Marcelo Ridenti (Unicamp), também publicou na edição de ontem o artigo "O golpe de 1964, aqui e agora" no qual (contrariamente ao espírito do seu livro, ousaria dizer) enfatiza as continuidades do Brasil pós-64 e pós-88. 

[...]

Uma bela adormecida em 1984 nas manifestações pelas Diretas-Já que por encanto despertasse hoje ficaria espantada de ver Fernando Henrique Cardoso ao lado de Marco Maciel, Lula aliado de Sarney. O país continua refém das forças que deram o golpe de 1964 e impedem mudanças que possam aprofundar a democracia política tembém num sentido social e conômico, diminuindo as desigualdades. O desafio continua posto. 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Chamada: Brave New World (2014)

Lembrando: data para o envio de trabalhos para o congresso Brave New World termina dia 2 de maio. O evento, organizado todos os anos pelo Centro de Pesquisa em Teoria Política da Universidade de Manchester, é um dos encontros mais importantes de teoria política da Europa. Os convidados deste ano serão David Archard (Queen's University) e Bob Goodin (Essex). 



Brave New World 2014: Call for Papers
We invite submissions for Brave New World 2014, the eighteenth annual postgraduate conference organised by the Manchester Centre for Political Theory (MANCEPT). The conference will take place on Thursday 12th and Friday 13th of June 2014 at the University of Manchester.
We are pleased to announce that our keynote speakers this year will be:
  • David Archard (Queen’s University, Belfast): ‘What has Political Philosophy got to do with the Real World?’
  • Bob Goodin (ANU & Essex): ‘Complicity’
The Brave New World conference series is a leading international forum dedicated to the discussion of postgraduate research in political theory. Participants will have the chance to meet and talk about their work with eminent academics, including members of faculty from the University of Manchester as well as the guest speakers who will deliver plenary addresses.
Guest speakers in previous years have included: Richard Arneson, Brian Barry, Simon Caney, G.A. Cohen, Roger Crisp, Cecile Fabre, Jerry Gaus, Peter Jones, Chandran Kukathas, Kasper Lippert-Rasmussen, Susan Mendus, David Miller, Onora O’Neill, Michael Otsuka, Bhikhu Parekh, Carole Pateman, Anne Phillips, Thomas Pogge, Joseph Raz, Andrea Sangiovanni, Samuel Sheffler, Quentin Skinner, Hillel Steiner, Adam Swift, Philippe Van Parijs, Leif Wenar, Andrew Williams and Jonathan Wolff.
Submission guidelines
The deadline for submissions is 28 April 2014. If you would like to present a paper, please send an abstract of approximately 300 words in MS Word format and prepared for blind review to brave.new.world@manchester.ac.uk. Please also state your name and institutional affiliation. Papers focusing on any area of political theory or political philosophy are welcome.
Notices of acceptance will be sent by 2 May 2014.
We offer a small number of bursaries for presenters to cover accommodation and the registration fee of £20. These will be allocated according to need. If you wish to be considered for a bursary, please say so when submitting your abstract and state where you will be travelling from and any other sources of funding you have available to cover costs.  For further details please contact us at brave.new.world@manchester.ac.uk.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Livro: A Theory of Militant Democracy

O professor de ciência política da Duke University Alexander Kirshner lançou este mês pela Yale Press. "A Theory of Militant Democracy: The Ethics of Combatting Political Extremism". No livro Kirshner enfrenta um problema espinhoso para qualquer defensor da democracia: o que fazer, democraticamente, com elementos políticos antidemocraticos? Kirshner defende a inclusão política desses elementos como forma de mitigar seu extremismo e impedir o acesso a vias extra-institucionais. A exclusão dos direitos políticos pode ser uma política tão extremista (e injusta) quanto a adesão à concepções de bem radicais. Abaixo, segue um working paper de Kirshner sobre o assunto e uma descrição resumida do livro pelo próprio autor. 







A Theory of Militant Democracy: The Ethics of Cambatting Political Extremism
Alexander Kirshner


The book considers how pro-democratic forces can safeguard representative government from anti-democratic groups. By granting rights of participation to groups that do not share democratic values, democracies may endanger the very rights they have granted; but denying these rights may also undermine democratic values. New and unstable regimes often confront this difficulty and those regimes frequently end up banning significant political parties and restricting participation.
In the book, I argue that even those who reject democracy, or related values, possess legitimate interests in participation and that respecting their interests poses challenging normative and practical dilemmas for democrats. To come to grips with those dilemmas, I outline a set of principles for determining when one may reasonably refuse rights of participation. Rather than defending an ideological standard (e.g. Is someone a democrat? Are a party’s members adherents of a particular religion?), I argue that interventions in the democratic process, like a party ban, should only be undertaken when individuals violate or endanger the rights of others.
I develop and defend my approach to militant democracy through a number of real-world examples, ranging from the far-right British Nationalist Party to Turkey’s Islamist Welfare Party to America’s Democratic Party during Reconstruction. The book also considers the relationship of militant democracy to theories of democracy, free speech, judicial review, just war, and partisanship, among others topics.

domingo, 16 de março de 2014

Habermas: "Uma Europa forte"

Fui publicado no periódico inglês Juncture a tradução da palestra de Habermas "In Favour of a Strong Europe - What does this mean?". O texto havia sido apresentado em fevereiro em Postdam (ver aqui o texto original em alemão). Na palestra, dirigida originalmente aos membros do Partido Social Democrata Alemão (PDS), Habermas insiste no fortalecimento dos ideais normativos por trás da união política e financeira do continente e em uma coalizão socialista européia contra os principais entraves políticos à sua realização. 

- Habermas: "In favour of a Strong Europe - What does this mean?"

[...]


Only the federal government can take the initiative. It alone is in the position to offer something politically and economically to France and the European south, in neither of which is deeper integration enthusiastically welcomed. Of course, such a signal would only be the beginning of a long and very difficult process. Moreover, this signal would only be credible if one would (1) accept a Europe of two speeds; (2) relinquish intergovernmentalism; (3) pursue a European party system; and (4) bid farewell to the elite mode of current European politics. Here I make a few short comments on these four consequences, which have to be accepted if we would want to change policies.


quarta-feira, 12 de março de 2014

Rolf Kuntz: A Lei da Guerra

O Departamento de Filosofia da USP disponibilizou sua aula inaugural de 2014, ministrada por Rolf Kuntz (ver aqui o post do evento). Na palestra "A Lei da Guerra - Um Tema Clássico" Kuntz retoma os fundadores do direito internacional (Vitória, Suarez e Grotius). Não apenas as teses centrais desses juristas-filósofos são objeto de análise, como a comparação das duas tradições contemporâneas do direito internacional daí resultante. Kuntz também rejeita a associação indevida entre as (supostas) semelhanças entre Grotius e Kant (o último muito mais próximo da tradição hobbesiana nas relações internacionais do que da grotiana). Existem guerras justas e injustas?

Seminários IRI-USP 2014

O ciclo de seminários de 2014 do Instituto de Relações Internacionais da USP foi divulgado nesta semana. Entre as palestras de destaque, Phillippe Schmitter (European University) sobre democratização na Ásia e na África e Paulo Sérgio Pinheiro (Comissão Nacional da Verdade) sobre direitos humanos. As palestras ocorrem no IRI-USP e  são abertas a todos. 

- Seminários IRI-USP 2014







segunda-feira, 10 de março de 2014

Clara Charf: "A vida é luta"

Por conta das comemorações do Dia Internacional da Mulher, o caderno Aliás do Estado de São Paulo entrevistou Clara Charf, ex-militante comunista e viúva do político e guerrilheiro Carlos Marighella. Charf discutiu seu passado de militância, o papel da mulher nas lutas políticas brasileiras e reclamou dos jornalistas. Fica aqui a homenagem do blog ao dia da mulher:

[...] 

 "O que aprendi nesses anos todos: é preciso participar para conquistar espaço. Se eu tivesse ficado em casa, estaria até agora de braços cruzados, talvez fazendo tricô e casada com outro cara. Mas não consigo ver a vida da mulher isolada, partida da política. Hoje é relativamente mais ‘fácil’ ser mulher no Brasil, mas há muitos espaços a ganhar. A vida é construir, conquistar, pulsar. Para mim, a vida é luta."


A viúva vermelha

Juliana Sayuri - O Estado de S. Paulo
Clareou. Passava das 5h30 da matina dessa quarta-feira de cinzas e de nuvens tristes, ainda na ressaca do carnaval, enquanto as ruas paulistanas eram novamente tomadas por carros, buzinas e guarda-chuvas coloridos. Era o retorno à rotina da gente comum, que entre céu e concreto enfrenta trânsito caótico, trabalho chato, preço abusivo do filé ao café, tudo para voltar para casa e, depois de mais uma jornada, começar tudo de novo. Ainda chuviscando no início da tarde, enquanto caminhava pelas ruas do Bom Retiro, prestes a encontrar Clara Charf pela primeira vez, não imaginava que era justamente assim que a ilustre viúva de Carlos Marighella gostaria de ser retratada aos 88 anos: como gente comum.

Uma mulher comum, aliás. Quer dizer, tudo que ela não é. Clara Charf me recebeu na sua casa, após diversos pedidos de entrevista sobre sua luta feminista. Arisca, ressabiada e um tiquinho rabugenta, no primeiro minuto disparara do outro lado da linha: "Que que é esse tal Aliás?". Por fim, aceitou e abriu a porta, que trazia um tradicional capacho de "bem-vindos". De pele alva, olhos castanhos e fios brancos, a senhora vestia camisa vermelha, sua cor preferida, e jaqueta jeans. Se noutros tempos não tinha tempo para vaidades, dessa vez tinha batom rosinha, broche e brinco de flor.


A poucos passos da porta, uma mesa de madeira maciça. À esquerda, um calendário simples, um cartaz da comunista Soledad Barrett Viedma, adiante uma estante de madeira repleta de livros, entre muitos títulos sobre a ditadura e biografias de personalidades como Che e Lamarca.
A mesa, dividida. De um lado, uma toalha xadrez vermelha arrumada por Mazé, com café, bolo de maçã folhado e suco de uva kosher. De outro, orquídea branca, óculos, a biografia Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, de Mário Magalhães, uma revista Tpm e uns exemplares desse tal Aliás. "Vocês, jornalistas... Uma coisa é a profissão, o dever de trabalhar com a verdade, isto é, de publicar histórias que podem ser úteis para a sociedade.
Outra é querer transformar a vida em uma história de outro mundo. Não é assim. Somos todos iguais. Mas, por força das circunstâncias, cada um escolhe seu caminho." Ainda na mesa, um estojo negro com uma chapinha prata, assinada pela ministra Eleonora Menicucci, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher: "Homenagem a Clara Charf, uma guerreira pela paz, justiça social e liberdade. Brasília, 18 de fevereiro de 2014". Em poucas palavras, esse foi o caminho escolhido pela militante pernambucana.
Nascida num 17 de julho em Maceió, Clara cresceu no Recife. Filiou-se ao Partido Comunista aos 21. Queria a liberdade dos céus, mas, como não pôde ser aviadora, encontrou asas num vestido azul na Aerovias Brasil. Não tardou para que a aeromoça se tornasse um pombo-correio, num leva e traz de documentos para o Comitê Nacional do PCB. Depois se tornou taquígrafa do Partidão. É desses tempos a famosa história de amor: a "branquinha" cruzou o caminho de outro partidão, o deputado Carlos Marighella, no Rio.
Apaixonaram-se. Gdal Charf, mascate e judeu russo, se desesperou: sua filha metida com um schvartz, roiter e goy! Para impedi-la de fugir com esse preto, comunista e cristão, o pai rasgou seus documentos e suas roupas. Clara se refugiou na casa da deputada Adalgisa Cavalcanti, que lhe costurou um vestido. Clara o vestiu e fugiu à noite com Marighella.
Ficaram juntos de dezembro de 1948 a novembro de 1969, quando o guerrilheiro foi assassinado pela repressão. Nunca casaram no papel, pois na época estavam na clandestinidade. Se na intimidade eles se tratavam por "Lobinho" e "Chapeuzinho", nas ruas os nomes eram outros. Ao lado de Marighella, Clara, um dia princesa d’A Classe Operária, do PCB, se tornou Nice, Sílvia, Vera, entre outros nomes fictícios. Teve diversos endereços, principalmente no eixo Rio-São Paulo, articulando apoio tático para a Ação Libertadora Nacional, a ALN, enquanto o comandante viajava para ordenar a guerrilha Brasil adentro. A militante comunista ainda se tornou Marta Santos, em São Paulo, e Claudia Gonzáles, em Havana.
Nessas mil faces de uma mulher leal, Clara viveu sob duas ditaduras - a de Getúlio Vargas (1937-1945) e a militar (1964-1985). Na última, foi uma das primeiras mulheres a ter os direitos políticos cassados. Após a morte de Marighella, declarado o inimigo n.º 1 pelos militares, Claudia se exilou em Cuba. Na ilha de Fidel, aprendeu espanhol e virou tradutora. A primeira nova palavra: cepillo. "Dessas discussões sobre médicos cubanos agora... Eles são ótimos. Uma vez, fiquei doente e fui internada. Tinha três camas no quarto: uma mulher de um alto comandante, uma faxineira e eu. Todas iguais. Queria escovar meus dentes e fiquei pedindo uma escova para a enfermeira. Logo descobri que ‘escova’ é vassoura no espanhol, imagina", ri alto e sorri.
Hoje Clara tem um sorriso fácil, sincero, sonoro. Por muito tempo, não foi assim - "Marighella dizia: Clara, você não pode sorrir nas ruas, senão vão logo te reconhecer". Em Havana, Claudia tampouco sorria, nem para tirar fotos, por medo de ser descoberta. A militante voltou ao Brasil com a anistia, em 1979. "Anistia te dá sua vida de volta. É a alegria de poder discutir, viajar, sair, encontrar amigos, reencontrar família, recomeçar", conta, sentando-se numa poltrona da sala, arejada por janelões, diante de um cartaz do documentário Marighella, dirigido por sua sobrinha Isa Grinspum Ferraz.
- Posso fazer um retrato da senhora?, perguntou o fotógrafo Daniel Teixeira.
- Ué, e você trouxe a máquina pra quê?
De volta a São Paulo, Clara virou bibliotecária para ganhar o pão - e voltou a militar nos movimentos sociais querendo lutar para dividir o pão. Filiou-se ao jovem Partido dos Trabalhadores e, em 1982, disputou uma vaga para deputado, defendendo direitos das mulheres - apesar dos 19.500 votos, não foi eleita. Durante a campanha, notou no primeiro comício que sua identidade finalmente se firmara quando um companheiro lhe perguntou: "Você não é a Nice?". "Não. Sou Clara Charf. De verdade."

sexta-feira, 7 de março de 2014

Seminários de Ciência Política (USP)

A programação deste semestre dos Seminários de Ciência Política da USP foi divulgada na semana passada. Entre os palestrantes convidados, Adam Przeworski (NYU), Maria Hermínia (USP), Gustavo Pereira (Republica) e George Tsebelis (Michigan). os seminários ocorrem as quintas e são públicos. 


Prédio de Filosofia/Ciências Sociais da Cidade Universitária, 
Av. Professor Luciano Gualberto, 315, São Paulo-SP. 
Abertos ao público e à imprensa, sem necessidade de inscrição prévia. 

quinta-feira, 6 de março de 2014

Fascismo, Rússia e Ucrânia

As raízes da crise ucrâniana vão além do simples descontentamento político dos ucrânianos com o governo de Viktor Yanukovych, argumenta o historiador Timothy Snyder (Yale). Em uma série de artigos para a NY Reiview Snyder sustenta que os manifestantes da Maidan (praça de Kiev onde os confrontos começaram) - compostos tanto por jovens estudantes pró-Europa como ex-veteranos da guerra do Afeganistão - na verdade travam uma luta contra o projeto geopolítico liderado por Putin conhecido como "União Eurasiana": uma união econômica e política de países europeus contrários à "decadência liberal" ocidental defendida pela União Européia.


(RIA Novosti/Alexei Furman) 


- Synder: "Fascism, Russia and Ukraine"

[...]

The strange thing about the claim from Moscow is the political ideology of those who make it. The Eurasian Union is the enemy of the European Union, not just in strategy but in ideology. The European Union is based on a historical lesson: that the wars of the twentieth century were based on false and dangerous ideas, National Socialism and Stalinism, which must be rejected and indeed overcome in a system guaranteeing free markets, free movement of people, and the welfare state. Eurasianism, by contrast, is presented by its advocates as the opposite of liberal democracy.
The Eurasian ideology draws an entirely different lesson from the twentieth century. Founded around 2001 by the Russian political scientist Aleksandr Dugin, it proposes the realization of National Bolshevism. Rather than rejecting totalitarian ideologies, Eurasianism calls upon politicians of the twenty-first century to draw what is useful from both fascism and Stalinism. Dugin’s major work, The Foundations of Geopolitics, published in 1997, follows closely the ideas of Carl Schmitt, the leading Nazi political theorist. Eurasianism is not only the ideological source of the Eurasian Union, it is also the creed of a number of people in the Putin administration, and the moving force of a rather active far-right Russian youth movement. For years Dugin has openly supported the division and colonization of Ukraine.
The point man for Eurasian and Ukrainian policy in the Kremlin is Sergei Glazyev, an economist who like Dugin tends to combine radical nationalism with nostalgia for Bolshevism. He was a member of the Communist Party and a Communist deputy in the Russian parliament before cofounding a far-right party called Rodina, or Motherland. In 2005 some of its deputies signed a petition to the Russian prosecutor general asking that all Jewish organizations be banned from Russia.
Later that year Motherland was banned from taking part in further elections after complaints that its advertisements incited racial hatred. The most notorious showed dark-skinned people eating watermelon and throwing the rinds to the ground, then called for Russians to clean up their cities. Glazyev’s book Genocide: Russia and the New World Order claims that the sinister forces of the “new world order” conspired against Russia in the 1990s to bring about economic policies that amounted to “genocide.” This book was published in English by Lyndon LaRouche’s magazine Executive Intelligence Review with a preface by LaRouche. Today Executive Intelligence Review echoes Kremlin propaganda, spreading the word in English that Ukrainian protesters have carried out a Nazi coup and started a civil war.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Adam Przeworski na USP

O cientista político Adam Przeworski (NYU) ministrará na semana que vem a palestra The Partisan Logic of Women's Suffrage. Seguindo os desdobramentos de seu último livro, Democracy and the Limits of Self-Government, Przeworsky procura explicar a conquista histórica do voto feminino. Teria sido o voto feminino concedido ou conquistado? O evento também inaugura a programação anual dos Seminários de Ciência Política do programa de ciência política da USP.

Para aqueles com interesse em compreender melhor a carreira e os pressupostos de Przeworski (incluindo suas relações com  o assim chamado "marxismo analítico"), a entrevista de 2003 concedida a Gerardo Munck é um bom ponto de partida.





segunda-feira, 3 de março de 2014

Livro: A Natural History of Human Thinking

O antropólogo Michael Tomasello (Max Planck) acabou de publicar pela Harvard Press o livro A Natural History of Human Thinking fruto de mais de duas décadas de estudos no instituto de antropologia evolutiva do laboratório alemão Max Planck. Tomasello é famoso por suas teorias sobre a evolução da cooperação social entre primatas (ver, por exemplo, o livro Why We Cooperate baseado em sua Tanner Lecture de 2008) e sobre as bases culturais da cognição humana. Excelente livro para quem quer ter uma visão panorâmica dos resultados da antropologia evolutiva humana. 

- Tomasello: "Origins of Human Cooperation" [2008 Tanner Lecture] 




Michael Tomasello 

Tool-making or culture, language or religious belief: ever since Darwin, thinkers have struggled to identify what fundamentally differentiates human beings from other animals. In this much-anticipated book, Michael Tomasello weaves his twenty years of comparative studies of humans and great apes into a compelling argument that cooperative social interaction is the key to our cognitive uniqueness. Once our ancestors learned to put their heads together with others to pursue shared goals, humankind was on an evolutionary path all its own.
Tomasello argues that our prehuman ancestors, like today’s great apes, were social beings who could solve problems by thinking. But they were almost entirely competitive, aiming only at their individual goals. As ecological changes forced them into more cooperative living arrangements, early humans had to coordinate their actions and communicate their thoughts with collaborative partners. Tomasello’s “shared intentionality hypothesis” captures how these more socially complex forms of life led to more conceptually complex forms of thinking. In order to survive, humans had to learn to see the world from multiple social perspectives, to draw socially recursive inferences, and to monitor their own thinking via the normative standards of the group. Even language and culture arose from the preexisting need to work together. What differentiates us most from other great apes, Tomasello proposes, are the new forms of thinking engendered by our new forms of collaborative and communicative interaction.
A Natural History of Human Thinking is the most detailed scientific analysis to date of the connection between human sociality and cognition.